Emocionado depoimento de Fabrício Carpinejar sobre o escritor João
Gilberto Noll, que morreu terça, dia 29 de março, em Porto Alegre.
"João Gilberto Noll foi assassinado"
João Gilberto Noll não morreu de causa natural, foi assassinado pela
sociedade. Foi assassinado pela indigência cultural do Estado. Foi
assassinado pelo total desprezo de nossas instituições pelos grandes
artistas e narradores. Foi assassinado por ausência de incentivo e de
apoio. Foi assassinado pelo orçamento imaginário da Secretaria Estadual
de Cultura. Foi assassinado pela inanição do Instituto Estadual do
Livro.
Em seu enterro na noite de quarta passada, na capela 9 do
Cemitério João XXIII, havia menos de 50 pessoas para se despedir de um
dos maiores escritores gaúchos de todos os tempos. Não apareceu prefeito
ou governador, não apareceu ministro ou deputado federal, não apareceu
presidente da Assembleia ou da Câmara Municipal. Os políticos não leem
mais? É isto? É artigo de regimento interno?
Não se decretou luto no Estado. Não existiu nenhuma mobilização popular. Não teve cobertura da imprensa no velório.
Ele
sequer aparece nos livros de nossas escolas como autor fundamental. Ele
não é listado como autor obrigatório em nossos vestibulares. Ele não
recebeu nenhuma honra nos últimos cinco anos — a mais recente foi como
autor homenageado do Festipoa, em 2011. As novas gerações já não o
conhecem, pois simplesmente não o estudam.
Noll ficou mergulhado no ocaso, logo ele que se mantinha
integralmente da literatura e dependia de convites para palestras,
recitais e conferências. Sua única fonte vinha a ser uma oficina de
escrita criativa esporádica.
Não me insulte alegando que ele
morreu de velho. Ninguém é mais velho aos 70 anos. Morreu de solidão
nesta cidade abandonada às bestas, onde os livros são uma seita para
pouquíssimos e corajosos.
Rio Grande do Sul virou uma Sibéria para os criadores, um exílio forçado. Ama-se esta terra platonicamente.
Não
parecia que perdíamos um de nossos mitos da literatura, da estatura de
um Mario Quintana, de um Caio Fernando Abreu e de um Moacyr Scliar.
Foi
um enterro simples, caseiro, envolvido pelos familiares e amigos mais
próximos, com apenas três coroas de flores enviadas para ornar a
cabeceira do caixão. Não teve fila para se aproximar do corpo e abençoar
a sua partida. Então, não me diga que ele morreu de morte natural. Foi
assassinado pela indiferença. Pelo desprezo. Pela desinformação. Pela
tristeza e pelo desgosto.
Como o nosso maior ganhador de Prêmio
Jabuti, o mais prestigiado do país, vencedor de cinco edições (1981,
1994, 1997, 2004 e 2005), vivia na total clandestinidade em Porto
Alegre? Como permitimos a sua desaparição pública?
Ele não ganhou
nenhuma alta condecoração em vida das autoridades no RS (a exceção foi o
Fato Literário em 2009, iniciativa da RBS). Não foi patrono da Feira do
Livro. Não é nome de biblioteca, dificilmente servirá para batizar
alguma Casa de Cultura. Estamos vendendo o nosso patrimônio e, pelo
jeito, não sobrará entidade nenhuma para ser nomeada. Como abandonamos à
míngua os nossos mestres?
Não venha com o atenuante de que a sua
escrita era difícil, é tão difícil quanto o fluxo de consciência de
Clarice Lispector que não para de crescer em vendas e ser saudada no
Exterior (The Complete Stories entrou na lista dos cem melhores
livros de 2015 feita pelo jornal americano The New York Times). Sua obra
— dezoito livros — continua sendo publicada pela Record. Tampouco é por
carência de circulação.
Como deixamos de lado um de nossos
romancistas mais adaptados ao cinema, com versões conhecidas nas telas
de Harmada, Hotel Atlântico e do conto Alguma Coisa Urgentemente?
Como
as mais prestigiadas universidades estrangeiras, de Iowa e King's
College, lhe pagavam para vê-lo produzindo como escritor-residente, e
jamais oferecemos condições para ele desenvolver a sua ficção na capital
gaúcha, logo ele que residia inteiramente aqui e retratava Porto Alegre
em seus livros?
Como ele era convidado a dar aula em Berkeley,
nos EUA, na cátedra de Literatura e Cultura Brasileira, e nunca fora
convidado para lecionar nas universidades gaúchas, logo ele formado em
Letras pela UFRGS?
Como não desfrutava de espaço fixo no rádio e na TV, ele que já foi influente colunista da Folha de S. Paulo de 1998 a 2001?
Como
menosprezamos alguém que renovou a escrita e enfrentou a supremacia do
regionalismo, que fundou uma escrita urbana, feita da procura nômade da
felicidade e de andarilhos que apenas encontravam pátria em seu corpo?
O
descaso não pode ser resultado da falta de atualidade da obra de Noll,
porque ele era absolutamente pós-moderno e abordava temáticas do momento
como homoerotismo, inadequação social e tolerância às minorias.
Como não zelamos por uma carreira vitoriosa de 37 anos, acostumada a projetar o Rio Grande do Sul no cenário internacional?
Ele
deveria ter sido lembrado, festejado, paparicado, cuidado, mimado,
protegido, acalentado, amado. Assim como Pernambuco fez com Ariano
Suassuna antes e depois de sua morte. Mas não aconteceu nada.
João Gilberto Noll morreu do nosso completo nada. Quem será a próxima vítima? Quem? [Fonte: Zero Hora]
(fonte: http://blogdomello.blogspot.com.br/2017/04/as-mortes-de-joao-gilberto-noll-por-fabricio-carpinejar.html)