Infelizmente tive a má ideia de começar a ler “Sobre os Ossos
dos Mortos”, de Olga Tokarczuk (Nobel de Literatura de 2018) pouco antes de
a pandemia
do coronavírus estourar no Brasil. Digo má ideia porque este é um livro
sombrio, ou, no mínimo, soturno. A começar pelo título, não de trata de
literatura fácil de digerir em tempos já naturalmente deprimentes como os que
estamos vivendo.
Dito isso, o livro é muito bom. Deixa uma impressão sobre a
gente, como poucos fazem. Fui lendo vagarosamente, poucas páginas por noite,
antes de dormir, até conseguir uma folga na Páscoa e devorá-lo um capítulo após
o outro, de uma tacada só.
Apesar de ser mais fácil ver este livro como um manifesto (ou um
panfleto) pelo respeito aos animais, achei muito mais interessante encará-lo
como uma pensata sobre o envelhecimento, sobre a solidão e sobre a loucura.
Três temas universais e atemporais, dignos de uma Prêmio Nobel.
A personagem principal, sra. Dusheiko, é o que podemos chamar de uma pessoa com
um claro parafuso a menos. Uma excêntrica. Ela é a narradora da história e vai
costurando tudo de um jeito muito peculiar, entremeando os fatos com suas
impressões sobre eles, e com reflexões que nos fazem pensar por um bom tempo.
E ela faz essas descrições de maneira única, apelidando tudo e
todos (seus melhores amigos são Esquisito, Dísio e Boas Novas; o vizinho é Pé
Grande, o outro é Capa Preta, a escritora é Acinzentada, e assim por diante),
enquadrando o mundo a seu olhar perturbado e perturbador. A descrição que ela
faz, por exemplo, logo no início do livro, de algumas corças a encarando
calmamente quando ela chega à casa do vizinho, é de arrepiar até os pelinhos do
dedão do pé. Ficarei com esta cena na cabeça por muitos anos ainda.
Mas sobre o que é o livro, afinal? Recomendo que não leiam nem a
orelha nem as costas da edição brasileira, porque contêm spoilers. Mas vou
fazer uma resenha ultrarresumida: num pequeno lugarejo ermo da Polônia, onde
todos se conhecem, onde a caça de animais e a coleta de cogumelos são os
passatempos mais corriqueiros, começam a acontecer algumas mortes suspeitas.
Seria uma espécie de romance policial, não houvesse no meio
disso tudo a vidinha da sra. Dusheiko, com sua televisão ligada em um só canal,
as traduções dos poemas de William Blake, as rondas pelas casas da redondeza,
os discursos irados e cartas que ela envia e nunca são respondidas, o baile dos
catadores de cogumelos, o entomologista que quer proteger os besouros do
desmatamento desenfreado, a noite de bebedeira, as moléstias que a paralisam de
dor, os pesadelos etc.
Não fosse a obstinação da personagem por astrologia e mapas
astrais, os quais ela cita a cada duas páginas, e o livro com certeza seria ainda
melhor. Entendo que esta persistência ajuda a compor a personagem aparentemente
biruta, que vê o mundo todo ultraconectado e regido por planetas, que pensa
saber a hora e a causa de sua morte desde o dia em que nasceu. Seja como for,
mesmo com todas estas referências astrológicas irritantes, o melhor
do livro são as tiradas filosóficas que ele solta entre uma cena e outra,
quando menos esperamos. Vou folheá-lo aqui despretensiosamente e pinçar alguns
desses trechos:
“Quando
chegamos a uma certa idade, precisamos entender que as pessoas sempre ficarão
irritadas conosco.” (página 31)
“Fico
comovida ao ver imagens de satélite e da curvatura da Terra. É verdade, então,
que vivemos na superfície de um globo, expostos ao olhar dos planetas,
abandonados num enorme vazio, onde, após a queda, a luz se aglutinou em
pequenos fragmentos e arrebentou? É verdade. Deveríamos ser recordados disso
todos os dias, porque nos esquecemos. Iludimo-nos achando que somos livres e
que Deus nos perdoará. Pessoalmente, acho o contrário. Todas as boas ações
transformadas em pequenas vibrações de fótons serão lançadas, enfim, para o
cosmos como um filme ao qual até o fim do mundo será assistido pelos planetas.”
(página 45)
“Quem
sente ira e não age, propaga a pestilência.” (página 57)
“Temos
este corpo, esta bagagem que só causa problemas, e, de fato, não sabemos nada
sobre ele. Precisamos de diversas ferramentas para nos informar sobre os
processos mais simples. Não é ridículo que, da última vez que o médico quis
verificar o que estava acontecendo com meu estômago, me mandou fazer uma
endoscopia? Tive que engolir um tubo grosso e foi necessária a ajuda de uma
câmera para que o interior de meu estômago se revelasse. A única ferramenta
primitiva e grosseira que nos foi dada como consolação é a dor.” (página 81)
“Os
irônicos sempre têm uma visão de mundo da qual se gabam triunfalmente.
Entretanto, se alguém começar a insistir e os questionar sobre os pormenores,
descobre-se que ela é composta de trivialidades e banalidades.” (página 87)
“Vivemos
cercados. Se examinássemos de perto cada fragmento de um instante, nos
engasgaríamos aterrorizados. Nosso corpo passa por um incessante processo de
desintegração, em breve adoeceremos e morreremos. Nossos entes queridos nos
deixarão, a recordação deles se dissipará na agitação; não sobrará nada. Apenas
algumas roupas no armário e alguém uma foto, já irreconhecível. As lembranças
mais preciosas se desvanecerão. Tudo tombará na escuridão e desaparecerá.
(…) Toda inconsciência é um estado abençoado.” (páginas 118 e 119)
“A
vida é uma espécie de campo de manobras experimentais muito exigente. A partir
desse momento, tudo o que você fizer contará, cada pensamento e cada ato. No
entanto, eles não servirão para te castigar ou premiar depois, mas porque constituirão
seu mundo. Assim funciona essa máquina.” (página 201)
“As
pessoas são capazes de entender apenas aquilo que inventam para si mesmas e é
com isso que se alimentam.” (páginas 213)
“Sempre gostei quando as
pessoas se reuniam sem precisar conversar. Se pudessem fazê-lo, imediatamente
começariam a contar asneiras, fofocas, começariam a enrolar e a se gabar.”
(página 215)
Pensando bem – e é isso o que a escritora polonesa Olga
Tokarczuk mais provoca na gente, o pensar –, a sra. Dusheiko, por mais louca que
seja, é muito menos louca do que os ditos “normais” ao seu redor. E eis o que o
livro mais pretende incutir em nós, seus leitores: a que ponto estamos
todos mergulhados em uma sociedade injusta, equivocada e, em vários aspectos,
hipócrita. Sabendo disso, de que lado ficaremos, dos sãos ou dos excêntricos?
Ou melhor: de nenhum dos dois?
Sobre os Ossos dos Mortos
Olga Tokarczuk
Tradução de Olga Baginska-Shinzato
Ed. Todavia, 2019 (2a reimpressão)
253 páginas
De R$ 44
a R$ 56