quinta-feira, 4 de maio de 2017

Bernardo Guimarães, história e tradições





Por Antônio de Paiva Moura

GUIMARÃES, Bernardo. História e tradições da província de Minas Gerais [1872] Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

            O autor
            Bernardo Joaquim da Silva Guimarães nasceu em Ouro Preto, em 1815 e faleceu na mesma cidade, em 1884. Era filho do poeta João Joaquim da Silva Guimarães e de Constança Beatriz de Oliveira Guimarães.
Neste livro Bernardo Guimarães narra três contos populares correntes em Minas Gerais no período provincial, no qual viveu o autor. São eles: “A cabeça do Tiradentes”, “A filha do fazendeiro” e “Jupira”. 
            Trata-se de uma obra propositadamente esquecida por críticos literários e editores. Somente um século depois da primeira edição é que veio a público a segunda. Possivelmente, o desprezo a essa obra advenha do fato de parte da intelectualidade não dar valor às tradições orais, aos contos populares. O próprio Bernardo justifica o rumo que toma no conto “A filha do Fazendeiro”, dizendo que o leitor espera no seu enredo “Um terrível duelo. Isso seria, por certo, mais dramático e talvez mais sublime. Mas eu conto uma história, e não invento um conto: quero os fatos com fidelidade, saídos de minha memória, tais quais nos contaram há bastante anos”. Nessa obra, como em outras, Bernardo quer ser contador de casos. 

O sumiço da cabeça de Tiradentes
Na versão tradicional corrente no povo de Ouro Preto é de que, após a execução de Tiradentes, seu corpo foi esquartejado e sua cabeça colocada em uma gaiola, presa a um mastro, na atual Praça Tiradentes. Ali deveria permanecer até ser aniquilada pelo tempo. Em pouco tempo, a cabeça exposta desapareceu do seu lugar.  Alguns amigos de Tiradentes resolveram roubar a gaiola com a cabeça. Conferenciou-se quanto à melhor maneira de enganar a vigilância portuguesa. A primeira reunião, segundo se diz, teria sido no prédio onde existe hoje o Hotel Pousada Ouro Preto.  Numa noite fria e nevoenta, o guarda foi assaltado por dois homens mascarados. Enquanto um, a sangue frio, estrangulou o soldado português, outro aproveitou para desaparecer com a gaiola e o seu terrível conteúdo. A cabeça de Tiradentes foi cuidadosamente embalsamada, antes de ser colocada numa urna de pedra, hermeticamente fechada, depois de todas as cavidades do crânio e os demais vãos da urna terem sido preenchidos com ouro em pó.
Na versão de Bernardo Guimarães, um vulto rebuçado surgiu por entre as trevas e se aproximou cautelosamente do tremendo poste. Com uma comprida vara que trazia, fez saltar do poste a caveira. Apanhou-a rapidamente, sem que o sentinela o visse. Indagado sobre a ausência da cabeça, o guarda, para não revelar seu cochilo, disse que viu um ser estranho voando com a cabeça do mártir. Muito tempo depois, os moradores da Rua das Cabeças viram, pela fenda da porta, um velho venerando, sozinho uma caveira. O velho passou a ser visto como uma figura estranha e misteriosa. Com a morte do velho, sua casa foi vasculhada e nunca mais a caveira foi vista.
Na primeira versão prevalece um sentido ideológico dos raptores da cabeça de Tiradentes. Na versão de Bernardo Guimarães sobressai a figura do velho e sua psicopatia. 

            Jupira
            “Jupira” é a história de uma jovem índia que viveu na floresta e na cidade, mas ao invés de ternura e felicidade o guerreiro, como Iracema de José de Alencar, ela era cruel com os pretendentes ao seu amor. O cenário da novela é nas margens do Rio Verde, afluente do Rio Grande, onde3 havia um seminário, em Campo Belo. Esse seminário era uma extensão do colégio do Caraça, no qual estudou o autor.
            Jupira era filha de José Luis, funcionário do seminário, com Jurema, índia que vivia nas matas no entorno do dito seminário. Até Jupira completar dois anos di idade, o casal vivia em casa próxima ao seminário, quando Jurema resolveu fugir para a mata levando a filha. Seis anos depois da fuga, Jurema resolveu devolver Jupira ao pai. José Luis, pensando em ter um rico pretendente para a filha, criou-a confinada e vigiada até sua adolescência. Novamente escapuliu para a mata e foi viver com a mãe na tribo de origem, quando o cacique Baguari passou a assediá-la. Depois de muitas tentativas de rapto de Jupira, ela acabou matando Baguari com flechadas quando este nadava no Rio Verde.  De volta à casa do pai, enamora-se de seu primo e ex-sentinela Carlito. Pouco tempo depois Jurema percebeu que seu amante a traia com uma jovem vizinha. Enfurecida, Jupira aproveitou-se da atração de Quirino, pretendente anterior e determinou a esse que matasse Carlito. Terminado o assassinato em presença de Jupira, ela revelou a Quirino que iria se entregar a ele, em pagamento daquele serviço. Quando Quirino abraçou Jupira, ela cravou-lhe o punhal nas costas e disse a ele que a única pessoa que havia amado era Carlito. Em seguida, embrenhou-se na mata e desapareceu para sempre. 

A filha do fazendeiro
            Bernardo diz que “A filha do fazendeiro” foi uma história que o morador de um lugarejo no município de Uberaba, havia lhe contado, em volta de uma fogueira, no rancho de um tropeiro. Nesse lugarejo havia uma fazenda, uma capela e um cemitério que causavam assombro a quem por lá passasse.
            Um grande fazendeiro viúvo tinha uma filha de nome Paulina. Era moça bela, fina e educada em colégio de São João Del Rei. Próximo a uma derrubada de mata para lavoura, havia um rancho no qual uma negra fazia a comida para os escravos. Acompanhando o pai na inspeção da derrubada, Paulina ficou no rancho em companhia da cozinheira. Inesperadamente, uma grande onça pintada, perseguida por cães, entrou no rancho. Escravos, Roberto e senhor Ribeiro, pai de Paulina correram para acudir a moça, mas Eduardo, um viajante que estava por perto, chegou primeiro e atirou na onça. Antes de morrer a onça arrancou com a pata um pedaço do peito de Eduardo que foi conduzido como herói e socorrido na fazenda do senhor Ribeiro.
            Roberto era sobrinho do senhor Ribeiro, apaixonado por Paulina. Mas era um rapaz muito rude. Percebe que o senhor Ribeiro e Paulina cuidavam de Eduardo com todo zelo. Demonstrando ciúmes, passa a atacar Eduardo dizendo que ele era um comerciante de animais de carga e que não era honesto. Nenhum argumento de Roberto convenceu Paulina que passou claramente demonstrar interesse por Eduardo e preterir Roberto. Por outro lado, Eduardo estava dividido entre Paulina e Lucinda, noiva que havia deixado em Franca SP.  Roberto ameaçou Eduardo com uma faca e este jurou ao mesmo que nunca mais procuraria Paulina. Quando Eduardo se restabeleceu e voltou a Franca, Lucinda havia se casado com outro, pensando que o noivo jamais sairia da fazenda do senhor Ribeiro. Para esquecer Lucinda, Eduardo foi comerciar uma grande quantidade de mulas em Taubaté.
            Desde que Eduardo havia partido da fazenda, Paulina adoeceu sentindo sua falta. Ribeiro pensou que se a filha se casasse com Roberto, ela recuperaria sua saúde Embora tivesse ficado noiva de Roberto, esse recurso não surtiu efeito. A moça continuava cada vez pior. De Taubaté, Eduardo foi para Uberaba na esperança de se encontrar com Paulina. Paulina sofria constantes desmaios e ficava cada vez pior. Por isso Ribeiro mandou buscar um médico em Uberaba. No lugar do médio veio o padre que também atuava como médico. Senhor Ribeiro e o padre tentaram persuadir Eduardo no sentido de quebrar o juramento e se declarar a Paulina, na tentativa de salvá-la da morte. Eduardo então disse: Jurei, senhor Ribeiro, e não sou homem que falte ao meu juramento por motivo nenhum deste mundo. Acima de tudo está a honra e consciência. Só quebrarei o juramento com o consentimento de Roberto.  
            Roberto percebeu que não tinha chance de se casar com Paulina, mas certamente iria se sentir culpado pela sua morte. Montou em seu cavalo e foi a galope para casa. O padre médico continuava na fazenda tentando recuperar Paulina. No dia seguinte o padre permitiu que Eduardo ficasse a sós com Paulina. Ela disse que se sentia melhor com a presença dele. Enquanto isso, Ribeiro recebeu uma carta do pai de Roberto dizendo que ele havia se suicidado. Antes de morrer havia concordado que Eduardo quebrasse seu juramento. O pai de Paulina e o padre foram ao seu quarto comunicá-la o acontecimento. Em seguida, abraços, beijos e juras de amor eterno. Com pouco, Eduardo percebeu que ela se desfalecia e acabou morrendo em seus braços.
            O padre não permitiu que o corpo de Roberto fosse enterrado em cemitério sagrado, mas sim a 500 metros da fazenda. Paulina foi sepultada próxima à fazenda, em local consagrado pelo padre. Próximo ao túmulo de Paulina, Ribeiro construiu uma capela. Com o tempo a fazenda ficou abandonada. A alma penada de Roberto perturba a todas as pessoas que passam por lá.
            Neste conto Bernardo narra com fidelidade o valor da palavra dada. O compromisso verbal valia mais que qualquer registro cartorial. O prestígio e a grandeza de uma pessoa eram medidos pelo grau de cumprimento da palavra.  “Fulano é uma pessoa de palavra”. “Beltrano não tem palavra”. Além disso, a obra registra os modos de vida no século XIX, como o prestígio dos fazendeiros ricos; as múltiplas funções do padre; a preferência por quem pratica atos heroicos.

Antônio de Paiva Moura é mestre em história e professor de história da arte na Escola Guignard – UEMG.

Publicado na Revista da Comissão Mineira de Folclore, Belo Horizonte, n. 29, ago. 2016.

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