Por Antônio de Paiva
Moura
GUIMARÃES, Bernardo. História e tradições da província de Minas
Gerais [1872] Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
O
autor
Bernardo Joaquim da Silva Guimarães
nasceu em Ouro Preto, em 1815 e faleceu na mesma cidade, em 1884. Era filho do poeta João Joaquim da
Silva Guimarães e de Constança Beatriz de Oliveira Guimarães.
Neste livro Bernardo Guimarães narra
três contos populares correntes em Minas Gerais no período provincial, no qual
viveu o autor. São eles: “A cabeça do Tiradentes”, “A filha do fazendeiro” e
“Jupira”.
Trata-se de uma obra
propositadamente esquecida por críticos literários e editores. Somente um
século depois da primeira edição é que veio a público a segunda. Possivelmente,
o desprezo a essa obra advenha do fato de parte da intelectualidade não dar
valor às tradições orais, aos contos populares. O próprio Bernardo justifica o
rumo que toma no conto “A filha do Fazendeiro”, dizendo que o leitor espera no
seu enredo “Um terrível duelo. Isso seria, por certo, mais dramático e talvez
mais sublime. Mas eu conto uma história, e não invento um conto: quero os fatos
com fidelidade, saídos de minha memória, tais quais nos contaram há bastante
anos”. Nessa obra, como em outras, Bernardo quer ser contador de casos.
O sumiço da cabeça de Tiradentes
Na versão
tradicional corrente no povo de Ouro Preto é de que, após a execução de
Tiradentes, seu corpo foi esquartejado e sua cabeça colocada em uma gaiola,
presa a um mastro, na atual Praça Tiradentes. Ali deveria permanecer até ser
aniquilada pelo tempo. Em pouco tempo, a cabeça exposta desapareceu do seu
lugar. Alguns amigos de Tiradentes
resolveram roubar a gaiola com a cabeça. Conferenciou-se quanto à melhor
maneira de enganar a vigilância portuguesa. A primeira reunião, segundo se diz,
teria sido no prédio onde existe hoje o Hotel Pousada Ouro Preto. Numa noite fria e nevoenta, o guarda foi
assaltado por dois homens mascarados. Enquanto um, a sangue frio, estrangulou o
soldado português, outro aproveitou para desaparecer com a gaiola e o seu
terrível conteúdo. A cabeça de Tiradentes foi cuidadosamente embalsamada, antes
de ser colocada numa urna de pedra, hermeticamente fechada, depois de todas as
cavidades do crânio e os demais vãos da urna terem sido preenchidos com ouro em
pó.
Na versão de
Bernardo Guimarães, um vulto rebuçado surgiu por entre as trevas e se aproximou
cautelosamente do tremendo poste. Com uma comprida vara que trazia, fez saltar
do poste a caveira. Apanhou-a rapidamente, sem que o sentinela o visse.
Indagado sobre a ausência da cabeça, o guarda, para não revelar seu cochilo,
disse que viu um ser estranho voando com a cabeça do mártir. Muito tempo depois,
os moradores da Rua das Cabeças viram, pela fenda da porta, um velho venerando,
sozinho uma caveira. O velho passou a ser visto como uma figura estranha e
misteriosa. Com a morte do velho, sua casa foi vasculhada e nunca mais a
caveira foi vista.
Na primeira
versão prevalece um sentido ideológico dos raptores da cabeça de Tiradentes. Na
versão de Bernardo Guimarães sobressai a figura do velho e sua psicopatia.
Jupira
“Jupira” é a história de uma jovem
índia que viveu na floresta e na cidade, mas ao invés de ternura e felicidade o
guerreiro, como Iracema de José de Alencar, ela era cruel com os pretendentes
ao seu amor. O cenário da novela é nas margens do Rio Verde, afluente do Rio
Grande, onde3 havia um seminário, em Campo Belo. Esse seminário era uma
extensão do colégio do Caraça, no qual estudou o autor.
Jupira era filha de José Luis,
funcionário do seminário, com Jurema, índia que vivia nas matas no entorno do
dito seminário. Até Jupira completar dois anos di idade, o casal vivia em casa
próxima ao seminário, quando Jurema resolveu fugir para a mata levando a filha.
Seis anos depois da fuga, Jurema resolveu devolver Jupira ao pai. José Luis,
pensando em ter um rico pretendente para a filha, criou-a confinada e vigiada
até sua adolescência. Novamente escapuliu para a mata e foi viver com a mãe na
tribo de origem, quando o cacique Baguari passou a assediá-la. Depois de muitas
tentativas de rapto de Jupira, ela acabou matando Baguari com flechadas quando
este nadava no Rio Verde. De volta à
casa do pai, enamora-se de seu primo e ex-sentinela Carlito. Pouco tempo depois
Jurema percebeu que seu amante a traia com uma jovem vizinha. Enfurecida,
Jupira aproveitou-se da atração de Quirino, pretendente anterior e determinou a
esse que matasse Carlito. Terminado o assassinato em presença de Jupira, ela
revelou a Quirino que iria se entregar a ele, em pagamento daquele serviço. Quando
Quirino abraçou Jupira, ela cravou-lhe o punhal nas costas e disse a ele que a
única pessoa que havia amado era Carlito. Em seguida, embrenhou-se na mata e
desapareceu para sempre.
A
filha do fazendeiro
Bernardo diz que “A filha do
fazendeiro” foi uma história que o morador de um lugarejo no município de
Uberaba, havia lhe contado, em volta de uma fogueira, no rancho de um tropeiro.
Nesse lugarejo havia uma fazenda, uma capela e um cemitério que causavam
assombro a quem por lá passasse.
Um grande fazendeiro viúvo tinha uma
filha de nome Paulina. Era moça bela, fina e educada em colégio de São João Del
Rei. Próximo a uma derrubada de mata para lavoura, havia um rancho no qual uma
negra fazia a comida para os escravos. Acompanhando o pai na inspeção da
derrubada, Paulina ficou no rancho em companhia da cozinheira. Inesperadamente,
uma grande onça pintada, perseguida por cães, entrou no rancho. Escravos,
Roberto e senhor Ribeiro, pai de Paulina correram para acudir a moça, mas
Eduardo, um viajante que estava por perto, chegou primeiro e atirou na onça.
Antes de morrer a onça arrancou com a pata um pedaço do peito de Eduardo que
foi conduzido como herói e socorrido na fazenda do senhor Ribeiro.
Roberto era sobrinho do senhor
Ribeiro, apaixonado por Paulina. Mas era um rapaz muito rude. Percebe que o
senhor Ribeiro e Paulina cuidavam de Eduardo com todo zelo. Demonstrando ciúmes,
passa a atacar Eduardo dizendo que ele era um comerciante de animais de carga e
que não era honesto. Nenhum argumento de Roberto convenceu Paulina que passou
claramente demonstrar interesse por Eduardo e preterir Roberto. Por outro lado,
Eduardo estava dividido entre Paulina e Lucinda, noiva que havia deixado em
Franca SP. Roberto ameaçou Eduardo com
uma faca e este jurou ao mesmo que nunca mais procuraria Paulina. Quando
Eduardo se restabeleceu e voltou a Franca, Lucinda havia se casado com outro,
pensando que o noivo jamais sairia da fazenda do senhor Ribeiro. Para esquecer
Lucinda, Eduardo foi comerciar uma grande quantidade de mulas em Taubaté.
Desde que Eduardo havia partido da
fazenda, Paulina adoeceu sentindo sua falta. Ribeiro pensou que se a filha se
casasse com Roberto, ela recuperaria sua saúde Embora tivesse ficado noiva de
Roberto, esse recurso não surtiu efeito. A moça continuava cada vez pior. De
Taubaté, Eduardo foi para Uberaba na esperança de se encontrar com Paulina. Paulina
sofria constantes desmaios e ficava cada vez pior. Por isso Ribeiro mandou
buscar um médico em Uberaba. No lugar do médio veio o padre que também atuava
como médico. Senhor Ribeiro e o padre tentaram persuadir Eduardo no sentido de
quebrar o juramento e se declarar a Paulina, na tentativa de salvá-la da morte.
Eduardo então disse: Jurei, senhor
Ribeiro, e não sou homem que falte ao meu juramento por motivo nenhum deste
mundo. Acima de tudo está a honra e consciência. Só quebrarei o juramento com o
consentimento de Roberto.
Roberto percebeu que não tinha
chance de se casar com Paulina, mas certamente iria se sentir culpado pela sua
morte. Montou em seu cavalo e foi a galope para casa. O padre médico continuava
na fazenda tentando recuperar Paulina. No dia seguinte o padre permitiu que
Eduardo ficasse a sós com Paulina. Ela disse que se sentia melhor com a
presença dele. Enquanto isso, Ribeiro recebeu uma carta do pai de Roberto dizendo
que ele havia se suicidado. Antes de morrer havia concordado que Eduardo
quebrasse seu juramento. O pai de Paulina e o padre foram ao seu quarto
comunicá-la o acontecimento. Em seguida, abraços, beijos e juras de amor
eterno. Com pouco, Eduardo percebeu que ela se desfalecia e acabou morrendo em
seus braços.
O padre não permitiu que o corpo de
Roberto fosse enterrado em cemitério sagrado, mas sim a 500 metros da fazenda.
Paulina foi sepultada próxima à fazenda, em local consagrado pelo padre.
Próximo ao túmulo de Paulina, Ribeiro construiu uma capela. Com o tempo a
fazenda ficou abandonada. A alma penada de Roberto perturba a todas as pessoas
que passam por lá.
Neste conto Bernardo narra com
fidelidade o valor da palavra dada. O compromisso verbal valia mais que
qualquer registro cartorial. O prestígio e a grandeza de uma pessoa eram
medidos pelo grau de cumprimento da palavra.
“Fulano é uma pessoa de palavra”. “Beltrano não tem palavra”. Além
disso, a obra registra os modos de vida no século XIX, como o prestígio dos
fazendeiros ricos; as múltiplas funções do padre; a preferência por quem
pratica atos heroicos.
Antônio
de Paiva Moura é mestre em história e professor de história da arte na Escola
Guignard – UEMG.
Publicado na Revista da
Comissão Mineira de Folclore, Belo Horizonte, n. 29, ago. 2016.
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