O quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, na Tijuca,
lugar onde Rubens Paiva prestou depoimento e foi torturado antes de desaparecer
em 1971, amanhece impune todos os dias. Às seis da manhã ouve-se a corneta que
acorda os soldados. Será que a vizinhança percebia o que acontecia ali? Não
sabemos. Há um silêncio quase intransponível quando se fala sobre o passado
desses lugares de memória autoritária. O livro mais recente de Marcelo Rubens
Paiva, Ainda estou aqui, lançado no ano
passado pela Editora Alfaguara, é um movimento contra o essa indiferença, que
parece permear as memórias dos desaparecidos políticos brasileiros.
A iniciativa de Marcelo Rubens Paiva de contar a história da sua família
é uma narrativa de sobrevivência e movimento. Não é de hoje que o autor fala
desse tema em suas obras. No romance Blecaute, de 1986, já havia uma referência
oculta ao pai desaparecido. Em Ainda estou aqui, no entanto, a opção
do escritor é mais objetiva. Ao ler o livro, somos conduzidos por um labirinto
de memórias, verdades e esquecimentos.
A trajetória de Eunice Paiva, sempre muito cuidadosa com a silhueta,
esposa e mãe preocupada com os códigos de etiqueta da elite paulistana, ganhou
outro rumo com o desaparecimento de Rubens Paiva. Ela foi empurrada para o
combate político sem nenhum treinamento. Sua busca, que primeiro era pelo marido,
aos poucos se tornou a procura pelo corpo e, no final, era a briga com o Estado
brasileiro para ter direito a um atestado de óbito, só conquistado em 1996.
Na superação da mãe, os filhos foram crescendo sem o pai. Cada um aceitou
a morte de Rubens Paiva em um momento diferente (o que dá a sua morte uma
impressão de continuidade atormentadora). A família precisou ainda lutar contra
as mentiras que os militares contavam. Diziam que Paiva estava vivo em Cuba,
com outra família, ou que voltaria logo, por exemplo.
É interessante perceber a relação da obra com a criação da Comissão
Nacional da Verdade no Brasil (Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011), que
revelou algumas provas importantes sobre a morte de Rubens Paiva e suscitou
constantes reportagens sobre o caso nos principais meios de comunicação do
país. O caráter interminável do desaparecimento do pai e a progressiva perda da
memória da mãe, devido ao mal de Alzheimer, levam o filho autor
a nos guiar pelos caminhos da ausência. No momento em que descobriria as
verdades, quando Rubens Paiva ressurge a partir das pesquisas da CNV, é Eunice
quem submerge, como se um tivesse que ir para que o outro ficasse. Os dois se
encontram na lucidez dela, no momento em que assiste a uma matéria sobre o caso
na TV e o reconhece.
O olhar sobre Eunice é respeitoso com os detalhes. Mulher prática,
advogada, mãe que calculava o imposto de renda do filho, mas nunca dançou com
ele, viúva que comemorou o reconhecimento da morte do marido tomando um sorvete
na piscina do prédio, advogada corajosa e revisora atenta de textos. Enquanto
coube a ela ser muitas, Rubens não escapou de permanecer o mesmo engenheiro,
deputado cassado e pai carinhoso.
As cartas endereçadas a Rubens Paiva, que levaram a polícia até ele, o
neto que não conheceu, a filha que estava estudando fora na ocasião do
desaparecimento, os índios que Eunice defendeu e mesmo esta resenha nos
aproximam ao “se” da história. E se nada disso tivesse acontecido? É inevitável
que se reflita sobre o tamanho do estrago causado pela repressão durante a
ditadura militar. E se antes quem invadiu a intimidade dessa família foi o
Estado brasileiro, agora é o filho caçula quem nos convida a participar dela.
Não há sensação de justiça no fim da história. No entanto, desde 2014,
existe uma estátua de Rubens Paiva, encomendada pelo Sindicato dos Engenheiros,
em frente à entrada do quartel onde foi visto pela última vez, o mesmo que
amanhece impune com o canto das cornetas. A estátua não olha para o prédio,
está de costas para ele. Mas o fato dela estar ali, nos faz pensar no lema do
início da abertura dos arquivos da ditadura militar: “Para que não se esqueça,
para que nunca mais aconteça”.
Ainda estou aqui poderia ser só
uma denúncia, mas é uma história cheia de humanidade e carinho sobre Eunice e
Rubens Paiva. Eles ainda estão aqui.
Cecilia Matos é
historiadora e professora de História.
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