Meus agradecimentos à professora Myrian Naves que conduziu a entrevista.
Nela, eu trato não apenas do meu romance, mas também do contexto histórico e dos reflexos do mesmo na educação e na sociedade brasileiras.
Estou aberto aos comentários e críticas! Sempre serão bem-vindas!
ENTREVISTA: Ricardo Faria: Efeitos da Ditadura Militar Brasileira sobre a Educação e a Cultura
(Myrian Naves) Ricardo, você considera plausível a máxima de
que, durante a Ditadura Militar Brasileira, em toda família havia pelo
menos um militante de esquerda e um colaborador da direita? (Na
verdade era que “Em toda família brasileira havia pelo menos um
militante na clandestinidade e um torturador”.) Ao ouvir essa frase,
sempre me lembrei da extensão territorial do país. (Ricardo Faria): Como historiador, eu gosto de analisar baseado em documentação. Creio, portanto, haver um exagero nessa “máxima”. Acredito que talvez alguém tenha escrito ou pensado tal coisa, mas não sei de qualquer documentação que possa comprová-la.
Imagino ter sido possível a coexistência, em uma mesma família, de pessoas que tivessem pensamentos, visões de mundo mesmo, completamente opostos. Mas, daí a generalizar-se para “toda família” parece-me muito perigoso. Aliás, toda generalização é perigosa, já disse um autor...
(MN) O Amor nos tempos do AI-5, título de seu livro. Fale-nos sobre o romance, sua maturação e construção. Diga-nos sobre os fios condutores que você utilizou na obra.
(RF) Vivi os tempos sombrios quando era estudante. Entrei para a Universidade em 1969, meses após a publicação do AI-5, o que ocorreu em dezembro de 1968. Não sei se na Europa as pessoas têm uma noção muito clara do que foi este decreto. Permito-me, pois, uma breve explicação, necessária, a meu ver, para contextualizar o romance.
Em 1964, um golpe empresarial-militar depôs o presidente João Goulart. Os chefes militares assumiram o poder, caracterizado pelo totalitarismo. Editaram diversos Atos Institucionais que, sobrepondo-se ao texto constitucional vigente, permitiram a prisão de centenas de pessoas acusadas genericamente de comunistas. Mandatos parlamentares foram cassados. Mas, se o golpe teve apoio da imprensa e respaldo popular, logo começaram os movimentos de resistência: greves, passeatas e protestos foram aumentando de intensidade e levando os setores mais duros das Forças Armadas a exigir mais firmeza do governo. Foi, então, editado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), o símbolo maior do período ditatorial. A censura prévia à imprensa e aos movimentos culturais tornou-se norma. Até a pena de morte foi instaurada. O governo federal passou a ter poderes extraordinários, podendo fechar o Congresso, prender juízes, cassar mandatos.
Daí a resistência aumentou, gerando um combate sem tréguas aos que se opunham. Torturas foram permitidas. A par desse Ato, o Decreto nº 477 permitia que professores e estudantes universitários fossem punidos, se acusados de subversão. Professores eram aposentados compulsoriamente e estudantes expulsos de seus cursos e proibidos de frequentarem novos cursos pelo prazo de cinco anos. Agentes policiais disfarçados tornaram-se “alunos” para, de dentro das salas de aula, denunciarem professores e alunos. Um clima de terror, portanto.
Livros eram censurados, autores de filiação marxista ou considerados como tal, eram sumariamente proibidos de serem citados. Músicos, compositores eram censurados e alguns tiveram de se exilar.
Vivi, portanto, o início desse período na condição de estudante. Os órgãos de representação estudantil (Diretórios Acadêmicos em cada unidade e Diretório Central dos Estudantes da Instituição) estavam fechados. A única e modesta representação possível eram os Centros de Estudo. E coube a mim presidir, por um ano (1970-1971) o Centro de Estudos do Curso de História, o que me permitiu presenciar e participar de situações que entendi pertinentes ao romance que intitulei “O amor nos tempos do AI-5”.
A construção do romance levou um bom tempo, desde a ideia inicial à sua concretização em um livro físico. A ideia surgiu de minha prática docente junto a adolescentes em alguns colégios em que tive a oportunidade de trabalhar após a formatura na Universidade.
Um dos temas difíceis de se trabalhar era o período militar no Brasil. Na época em que vivíamos a ditadura, falar dela era temerário; depois que teve início o processo de abertura política, os professores puderam respirar com mais liberdade nas salas de aula, mas nem sempre os alunos estavam muito interessados por esse tema. Então eu fiquei pensando se seria possível trazer o assunto de uma forma diferente... daí surgir a minha ideia de produzir um romance.
Acredite, a ideia me surgiu no século passado!!! Foi na década de 1990, não sei precisar com rigor em que ano, mas sei que foi ali que comecei a pensar nisso. E não sei se isso acontece com todos os autores, mas de imediato eu imaginei o início e o fim. Quem leu ou quem vai ler, verá que existe uma linha muito clara, muito definida, entre a primeira e a última página do livro. E essas páginas iniciais e finais estavam escritas desde o momento em que a ideia me surgiu.
Guardei-as carinhosamente, à espera de um momento em que eu teria o tempo para construir o “meio” do livro. E foi difícil, porque nos anos 1990 e até por volta de 2010, eu escrevia livros didáticos, cuja produção é uma verdadeira linha de montagem, com prazos exíguos, exigências do Ministério da Educação, exigências das editoras principalmente com o número de páginas, aí mandam cortar ou aumentar e tudo é pra ontem... eu não tinha condições de pensar no romance. Só depois que me aposentei e resolvi que não iria mais escrever livros didáticos, é que tive o tempo e a calma necessários para construir o que faltava. Basicamente, então, o livro foi escrito em 2012 e 2013. Fiz cinco ou seis releituras, suprimindo, acrescentando até enviar para uma revisora profissional que fez um trabalho maravilhoso.
Começava aí o calvário para tentar publicar. Voltarei a esse assunto em outra questão que você formulou. Por ora, sinteticamente: enviei os originais a uma editora que se comprometeu a me dar uma resposta em três meses. Não recebi essa resposta, apesar de ter enviado e-mails solicitando. Nada me foi respondido. Então, por uma questão ética, avisei que considerava o silêncio como uma negativa e me considerava livre para procurar outros caminhos. Pensei fazer produção independente e nem me recordo mais como apareceu num e-mail de algum amigo ou amiga a sugestão da editora Novo Século, para quem enviei o original, que foi aprovado. E a publicação se completou em dezembro de 2015.
Não me considero um literato, sou um contador de histórias, escritas numa narrativa para o público adulto, pois há elementos eróticos nas páginas do romance. Algumas resenhas e comentários que tenho recebido, indicam que o caminho foi trilhado com segurança, o que me anima a continuar, apesar de todos os percalços.
(MN): O AI-5 é cada vez mais um objeto de estudo crucial para o entendimento da atual política de estado brasileira?
( RF):Atribui-se a Hegel a afirmativa de que os povos que desconhecem sua História estão condenados a revivê-la. E Marx afirmou que a História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.
Considero tragédia o que aconteceu em 1964 e 1968. E farsa completa o que está acontecendo agora no país, com a derrubada da presidenta eleita e a assunção de um governo formado essencialmente por pessoas corruptas, reacionárias, que estão tentando levar o país ao século passado...
E cidadãos desavisados vão às ruas pedindo a volta dos militares ao poder...
Portanto, estudar o nosso passado, especificamente o período militar é crucial sim.
( MN): O ensino de História, desde o início da educação nas escolas brasileiras, continua sendo relevante e sempre o será, ou há épocas em que o ensino de História em qualquer país se torna algo decorativo, preenchendo apenas aparentemente o ensino básico com currículos lentos e que nunca chegam ao passado mais próximo e causador imediato do presente em cada época?
Eu me lembro das aulas ministradas nunca chegarem ao conteúdo mais próximo à ditadura militar. Colégios excelentes em que se chegava apenas ao início da Era Vargas, que seria estudada no próximo ano, todo ano. Falo da experiência como aluna. Há que se delimitar as fases da Ditadura, mas há um denominador comum às fases da Ditadura Militar e sua interferência na educação.
( RF): Podemos partir do pressuposto que o estudo da História é de fundamental importância para todos os estudantes. Mas temos que observar “qual estudo” era ministrado em determinadas épocas. Não cabe aqui, creio eu, dissertar sobre o que tem sido o ensino de História no Brasil desde sua implantação no século XIX. Já existem bons livros e teses a respeito. Creio mais produtivo se nos ativermos ao período militar e nas mudanças que foram propostas a partir de 1986, momento em que o país começava a se “redemocratizar”.
Eu me formei entre 1969 e 1973. E já lecionava desde os anos em que estive nos bancos escolares da Universidade. Comecei a publicar livros didáticos em 1975. O curso que fiz, portanto, foi num momento crucial de vigência do AI-5. E a História que “aprendi” foi tão-somente aquela que poderia ser ministrada. Sem discussão, apenas a narração de fatos e mais fatos. E era essa História que reproduzíamos nas escolas de ensino básico. Mas... a História nos leva a pensar e começamos a ver que aquela não era a História que deveríamos passar para nossos alunos. Guardo um material que escrevi em 1977 para um curso de extensão organizado por uma faculdade de Belo Horizonte, e me permito reproduzir alguns trechos:
“O mal está em que, no nosso país, é comum uma visão deturpada da História. Não basta haver gente que diga: ‘daí ver-se na História não o passado pelo passado, algo de estático, mas uma dinâmica que é auxílio para entendimento do atual e possibilidade do futuro’ (IGLÉSIAS, Francisco. História e ideologia, 1971, p. 14)
No Brasil tem-se a antiga visão, falsa e tola, de se estudar o passado pelo próprio passado, esquecendo as lições do grande Marc Bloch: ‘Primeiro que tudo, a própria ideia de que o passado, como tal, possa ser objeto de ciência é absurda’(BLOCH, Marc. Introdução à História, 1965, p.26).
Esquecem-se de que ‘aquele passado pereceu irrecuperavelmente e que dele só podemos ter visões incompletas e parciais, ainda que sintéticas... o dever dos historiadores não é para com os mortos; nem o culto do passado pelo passado deve ser o nosso princípio. É em nome do presente que julgamos o passado, pois não há passado puro e único, mas mutável como a História, de acordo com a visão interessada do presente’ (RODRIGUES, José Honório. Vida e História, 1966, pp. 9-10)
E, mais adiante, eu comentava exatamente o que você abordou: não se falava do presente, ficava-se apenas no passado:
“A cada dia que passa, mais se reduz a carga horária do professor de História. Hoje já estamos reduzidos a duas aulas semanais e sabemos de escolas onde só uma aula é concedida ‘com grande favor’ ao ‘contador de Histórias’. E, com duas aulas semanais, se o professor fica um semestre com os tempos antigos, a consequência é óbvia: não vai dar tempo de ver todo o programa. O aluno é o mais prejudicado, pois seu estudo, sendo cronológico, e não se completando, é exatamente o século XX que ficará ignorado. Justamente o momento histórico mais importante, justamente o objetivo máximo do estudo de História, que é preparar o aluno para compreender a realidade que o cerca”.
Somente a partir de 1986 é que pudemos notar uma grande mudança. Discutirei isso mais à frente.
(MN): Quanto à sua prática, em particular, gostaria de saber a respeito. Gosto de dividir os conteúdos de Literatura Brasileira com a cadeira de História. Há trabalhos em que já utilizamos livros seus para aprofundar os conceitos abordados nas obras. Entre outras práticas, trabalhando com debates, trabalho de campo. Em obras de conteúdo jornalístico, como Olga, de Fernando Morais, quando adotado, os alunos iam às ruas, na principal praça da cidade durante a campanha para prefeitura municipal, entrevistando candidatas e candidatos sobre a obra e o período histórico. Diziam a respeito do período histórico, não da obra, que não a leram, mas sabiam que “Olga, mãe de Prestes” foi forte. Desconhecimento sobre Olga Benário Prestes, esposa de Luís Carlos Prestes. Outros evitavam o assunto. Mapeando a cidade por setores, a pesquisa abrangeu o Centro e seu caminho até a praça do palácio de governo e o bairro de classe média mais próximo, também centro comercial. No Sindicato dos Bancários, órgão que teve em seus quadros um dirigente do Partido Comunista na União Soviética, Armando Ziller, ali ninguém queria falar sobre o assunto. Reconheciam Prestes, mas não liam, disseram que não tinham tempo. Na Faculdade de Economia, no D.A., não tinham a obra na biblioteca, não o leram. Nas ruas, ninguém. Na biblioteca pública da cidade, uma excelente leitora, funcionária da biblioteca, discorreu a respeito da obra. Pedagoga e orientadora em uma escola da UNI-BH em que eu trabalhara, escola dirigida por um professor de História. A UNI-BH era dirigida por um professor de História. E com uma equipe da área reconhecidamente competente. Soube agora, aqui, instituição essa em que você atuou.
(RF): Você, ao que tudo indica, teve a felicidade de fazer trabalhos integrados com outras disciplinas. Eu tentei algumas vezes, cheguei até a escrever um livro com uma colega da área de Literatura, fazendo uma integração muito interessante entre nossos campos de saber. (Este trabalho nunca foi publicado).
As possibilidades de trabalhar conteúdos afins me parece salutar. Infelizmente, pouco utilizada pelos professores, em parte devido ao fato de que nos cursos de Licenciatura tais possibilidades não são colocadas de forma enfática. E há resistências de nossos colegas...mas é melhor nem falar disso...
Uma coleção didática da qual participei propunha justamente uma integração entre História e Geografia (isso ainda no período militar). Não deu certo, e sempre o que ouvíamos dos professores era que “o outro não quer colaborar, não abre mão... não quer saber de mudança...”
(MN): Gostaria de comentário em relação ao desconhecimento da população em relação à sua própria história recente. De como isso pode vir a interferir no comportamento da população por gerações.
(RF): O que nós assistimos em 2016, no Brasil, nas passeatas organizadas pelos movimentos que defendiam o impeachment da presidenta Dilma foi uma demonstração cabal da ignorância política e de nossa História. Acusavam-se pessoas de serem comunistas (discurso igual ao de 1964) mas quem acusava não era capaz de explicar o que era comunismo. Pedia-se a volta dos militares, demonstrando o total desconhecimento do que foi aquele período. Seriam pessoas que, como você salientou anteriormente, não tiveram oportunidade de estudar o presente? Ficaram só no passado?
E na Bienal do Livro de São Paulo eu tive a desagradável constatação dessa ignorância. Um rapaz de vinte e poucos anos, aproximou-se de mim na tarde de autógrafos, e perguntou, com uma ingenuidade absoluta: AI-5 é Artificial Intelligence nível 5?
Vamos rir ou vamos chorar?
(MN): Vamos concordar.
Fale-nos da época de seu curso de faculdade e de sua experiência ministrando o conteúdo. Caso possa delimitar por datas e períodos da ditadura, seria interessante.
(RF): Com relação ao meu curso, creio que não há mais o que acrescentar, pois já abordei essa questão acima. Já minha experiência ministrando o conteúdo “oficial”, aquele que éramos obrigados a ministrar, pois não se admitiam outras possibilidades, foi bem interessante. Inclusive, a experiência que me marcou profundamente eu a coloquei no meu romance, num diálogo entre um professor e uma estudante. Vou reproduzir:
“Sabe onde eu aprendi uma lição fundamental para um professor de História e que jamais foi dita ou comentada nas aulas de didática?
- Onde?
- Numa conversa com um diretor de uma escola, aliás, a primeira escola em que lecionei, eu era estudante ainda. Um belo dia, eu tinha uma janela no horário, ele me chamou na sala dele e ficamos conversando. Ele queria saber minha opinião sobre a escola, o que eu estava ensinando, e de repente ele me soltou uma pergunta, fatal!
- O que ele perguntou?
- Algo assim, “Você acha que nossos alunos precisam aprender tudo isso que você ensina?” Haydée, eu só não caí sentado porque eu já estava sentado! Devo ter feito a maior cara de pateta. Fiquei com o olhar esbugalhado para ele. E, com a maior calma do mundo, ele começou a falar que era para eu pensar nisso, que era uma pergunta que ele fazia a todos os professores com quem trabalhava. E me deu um exemplo: em outro dia ele me vira comentando que eu ia passar uns slides sobre o Renascimento. “Você passa slides dos palácios renascentistas, já passou algum slide mostrando barracos em favelas, barracos que são os palácios concretos onde moram nossos alunos?” ele me perguntou. E eu fiquei calado porque não sabia que podia fazer o que ele me questionava, porque na faculdade ninguém me falou sobre isso!
- Os diretores costumam ser todos assim?
- Não, pelo contrário, este foi o único que eu conheci com essa cabeça boa! A partir daquela conversa eu modifiquei toda a minha maneira de dar aula, entendi que eu estava na escola era para atender aos alunos e não à coordenação que me exigia diários de classe corretamente preenchidos, sem rasuras. O que meus alunos precisavam saber de História? Tudo que estava no livro didático? Não, não, eu tinha de selecionar o que era importante para a vida deles. Este é o ponto central, fundamental, da escola: entender que o aluno é a razão de ser daquela instituição. E que tudo tem de girar em função dos alunos, não da burocracia.”
Isso realmente aconteceu... em 1972!!! Foi o que me fez pensar e mudar. Porém, quantos professores tiveram um diretor como este?
Os livros que publiquei no período militar, em cerca de dez anos, de 1975 até 1985 eram bem tradicionais, não há como negar. Mesmo porque, arriscar-se a produzir textos mais críticos era algo perigoso e que poderia trazer prejuízos à editora (detalhe importante: em nenhum momento, o editor censurou ou criticou o que escrevíamos), pois o livro poderia ser proibido.
Apesar disso, algo pôde ser feito. Recordo-me que em um dos livros coloquei um recorte de jornal que questionava: 1964: golpe ou revolução? Isso foi em 1984, já no período de abertura política, o AI-5 já tinha sido revogado. Não tivemos qualquer problema, mesmo o artigo deixando claro que tinha ocorrido um golpe e não uma revolução.
(MN): A partir da Ditadura Militar, do seu final e dos governos que a sucederam, qual foi a maior diferença metodológica e de conteúdo no Ensino de História? Há uma mudança específica que demonstra o que é viver em uma sociedade conservadora e de direita ou numa sociedade em que há diálogo, numa sociedade que gere a educação de sua época com liberdade e pesquisa livre de controle do estado? Lembro-me de haver uma modificação de ponto de vista, em relação aos estudos da formação do povo brasileiro. Estudos que priorizam a história do povo, etnias, com um ponto de vista abrangente e não limitante. A liberdade se reflete na educação ou a educação é que traz seus reflexos à capacidade de um povo vivenciar a plenitude da cidadania?
(RF): De fato, assim que terminou o ciclo militar no poder, em 1985, muita coisa se modificou. Ideias que germinavam há muito tempo puderam ser apresentadas, discutidas e sancionadas. Novos programas para o ensino de História foram formulados, destacando-se aqueles de São Paulo e de Minas Gerais. O paulista foi criticado acerbamente, gerou debates, críticas negativas e acabou sendo bem modificado em relação à proposta original.
O de Minas Gerais, formulado após vários debates e conferências envolvendo os professores, priorizou estudos marxistas, o que não deixou de ser problemático, porque a imensa maioria dos professores do Estado desconheciam completamente o que seria o pensamento de Marx, a questão dos Modos de Produção, das Forças Produtivas, da Dialética.
Metodologicamente, a grande inovação, presente tanto em São Paulo quanto em Minas Gerais e nos demais Estados que acompanharam essas mudanças, foi a tentativa de permitir que os alunos construíssem seu próprio conhecimento e não ficassem “presos” aos livros didáticos que sempre ofereciam uma visão única dos acontecimentos históricos.
Era também um desafio enorme, porque pressupunha-se que a produção do conhecimento só poderia ocorrer com os alunos tendo materiais diversos para análise, textos e documentos que apresentassem visões diferentes. No entanto, as bibliotecas escolares – quando existiam – não estavam adaptadas a essas novas necessidades.
Chegamos a produzir um material didático diferente, nessa ocasião, apresentando justamente textos e documentos variados que pudessem suprir – em parte – a lacuna que as bibliotecas apresentavam. Tal material foi elogiado a princípio e depois pessimamente utilizado por boa parte dos professores, que não conseguiam compreender o que era “produção do conhecimento” e continuavam a exigir, nas provas e trabalhos, a “velha História”.
Pouco a pouco, esse viés marxista foi sendo colocado em segundo plano e a História Cultural foi assumindo um papel mais destacado. É o que temos hoje, em boa parte da produção didática de História.
(MN): A Ditadura Militar trouxe atraso aos quadros da Educação, às pesquisas? Priorizou conteúdo e não formação? Ou trouxe uma reação tão forte quanto a repressão? O profissional que saía das universidades era um cidadão consciente de sua cidadania? Qual é e qual era então o diferencial dos profissionais que optaram pelo ensino de História à sociedade brasileira? Qual é a importância de um currículo universal, para escolas públicas e particulares, na sua área de atuação? Qual a importância de todas as classes sociais terem um currículo escolar idêntico e em completude?
(RF): Sim, com certeza. E a área das Ciências Humanas foi a mais violentada, inclusive com a criação de um “monstrengo” chamado Estudos Sociais, que era a junção dos conteúdos de História, Geografia, Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB). Isso deveria ser ministrado, preferencialmente, por um só professor, o que praticamente não ocorreu, por razões óbvias.
Criou-se, inclusive, um curso de dois anos para a formação desse “profissional polivalente”, que passou até mesmo a ser olhado com desconfiança nas escolas que os contratavam. Ora, o que esperar de um professor que, em dois anos, teria contato com estudos de História, Geografia, Sociologia, Filosofia, Política...?
Essa sua pergunta poderia levar a uma resposta em forma de livro... Eu sempre disse que o governo militar só conseguiu um sucesso nos 21 anos: destruiu completamente a educação no Brasil. Lei 5.692/1971 que reorganizou o ensino fundamental e médio; Reforma Universitária; os acordos MEC/USAID; preocupação em formar técnicos e não cidadãos... a lista é enorme!
(MN): Um fato a considerar, o surgimento de obras literárias que contam a Ditadura Militar, escritas durante e após a Ditadura, obras escritas por aqueles que vieram da Educação, da Cultura, por jornalistas. Obras teatrais e cinematográficas. Abordam aspectos importantes da época, cada uma com o ponto de vista do autor que vivenciou a época. É importante ressaltar isso, já que há um período imediato após a ditadura militar em que os autores, fartos do jugo, “gradualmente” livres do jugo ditatorial, deram vez a projetos que tinham guardado para outros tempos e que não contemplavam uma análise profunda da época. Alguns autores sempre a trouxeram à baila, seja como cenário, seja como painel demonstrativo de causa e efeito, até como método de estudo da sociedade brasileira contemporânea. As obras escritas durante e logo após a Ditadura Militar ou após longo período, sofreram a crítica velada ao tema, recebendo uma tarja de “obra datada”. Como se o passado não fizesse parte da realidade presente. E devesse ser encoberto, esquecido. Algo como a lógica que mais recentemente faria derrubar o Presídio do Carandiru. Enterrar, esquecer, pensar do presente em diante. Cito a obra do escritor Alcione Araújo, exemplar análise da sociedade contemporânea que contempla o passado em sua análise da sociedade brasileira. Analisa os efeitos da Ditadura Militar no Brasil. Cito um texto do autor que traz motivos que conduziram sua atuação na Cultura, procurando influir na modificação de tal quadro.
“O país vive esquizofrênica fratura: uma educação sem cultura e uma criação artística sem público. Sua economia pode até crescer, mas cresce sem alma.” No mesmo texto, adiante, “Braço sistematizado da cultura, a educação tem métodos, normas e hierarquias para realizar a transmissão do saber. A expectativa é de que vivenciado o processo – graduar –se, digamos –, se esteja preparado e motivado para fruir a arte de várias épocas nas suas várias formas. O que se vê, porém, são médicos que jamais leram um romance, engenheiros que nunca foram ao teatro, advogados que não vão ao cinema, dentistas que não se emocionam com a música etc. Na origem do fenômeno, uma sociedade que não tem a educação e o saber como valores – e sim como meios de se ter uma profissão e se inserir na produção. “
(ARAÚJO, Alcione. A Esquizofrenia na Educação e na Cultura, artigo, 2006. Jornal Estado de São Paulo.)
(RF): Em minhas andanças pelo Estado, dando cursos e palestras para professores de ensino fundamental (que, na época militar passou a ser chamado Ensino de 1º Grau), conheci vários professores, não apenas de História, mas também de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências.
E não me esqueço que, na longínqua cidade de Almenara, no norte do Estado, após um dia de palestras, estava à mesa com o professor Mário de Oliveira, um matemático bastante conhecido no Estado. E enquanto jantávamos, do alto de seus quase 80 anos, ele me disse uma frase que nunca esqueci, e que possui ligação com o que Alcione Araújo disse:
“O mal dos professores de Matemática é que eles pensam que para dar aula de Matemática precisam saber apenas Matemática”. Ele era o exemplo mais puro do que falou aquela noite. Era amigo de escritores famosos como Pedro Nava, Drummond de Andrade. Era um intelectual e não apenas o conhecedor de números, equações e tudo aquilo que os professores ensinam em suas aulas. Mas ensinam sem ter o conhecimento social, a realidade de seus alunos. Posso até dizer: passam slides do Renascimento mas desconhecem os casebres onde seus alunos vivem.
(MN): Grande professor Mário de Oliveira. Corria a lenda entre os alunos, no Colégio Marista Dom Silvério, que ele dizia, “quem não se interessar pelo conteúdo, não compareça, todos vão receber nota para passar e se formar”. Claro, todos compareciam. Dizem, quem não aprendesse Matemática com ele, não aprenderia com mais ninguém. Alunas e alunos queriam ter em seu currículo o título de “aluno do professor Mário de Oliveira”.
A recente abertura da Escola em relação às cidades, e das cidades à Escola, a cidade como parte da Escola, seus museus, os centros de cultura, os teatros, cinemas, as bibliotecas, como aparelhos que pertencem à Educação e à Cultura, traz benefícios aos estudos contemporâneos da História? As políticas de bônus de Cultura ao trabalhador, a descentralização das iniciativas da cultura, a compra das obras didáticas e literárias feita pelo governo e que vinham acontecendo no território nacional, podem agregar valor à educação, ou não representam grande avanço? A retirada de incentivo a essas áreas pode afetar a formação do professor em que grau, em que dimensão?
(RF): Creio que você, aqui, me apresentou uma questão para a qual você mesma tem a resposta. Sim, abrir a escola à comunidade em que ela está inserida, levar os pais a participarem ativamente das decisões que lhes interessam (afinal, a escola não é pública?), os programas de revitalização das bibliotecas de alunos e de professores, tudo isso tem uma importância fundamental. E é exatamente isso que está sendo perdido, ou será perdido com as decisões atabalhoadas desse governo que assumiu no segundo semestre de 2016.
Professores e alunos serão privados de algo fundamental para suas vidas. Não gosto nem de pensar sobre as consequências dessa privação para o nosso futuro.
(MN): Gostaria de um depoimento do autor, sobre a atual situação do escritor brasileiro frente ao mercado, às editoras, ao leitor. Esse mercado e seu estado atual tem relação direta com a Ditadura Militar e sua influência na sociedade brasileira, ou é maior a influência da origem e formação do povo brasileiro? Da História desde 1500? Das influências da América Latina, e de outras influências ao longo do século XX? É basicamente a Educação em sua prática histórica que influencia isso? Ou é também resultado de uma crise mundial, social e econômica, e de novos processos de leitura iniciados no século XX, mais precisamente em 1976?
Um historiador vê esses pontos como um painel a ser considerado?
(RF): Eu não diria que o estado atual da Literatura Brasileira seja resultante do período militar. Devo confessar, no entanto, que minha vivência neste campo é bem diminuta, pois não passa de um ano.
No entanto, participando de Bienais e de entrevistas via internet, já pude constatar determinadas questões que me parecem graves.
Primeiro que tudo, utilizando-nos das redes sociais, notadamente do Facebook, nos deparamos com centenas de pessoas escrevendo. Várias, inclusive, nomeiam seus perfis assim: Autor Fulano, Autora Fulana. E o que essas pessoas estão escrevendo? Admito que li pouca coisa dessa leva de autores e autoras. Conheci pessoalmente algumas pessoas e li algumas obras. Encantei-me com algumas, decepcionei-me profundamente com outras.
Boa parte desses autores e autoras novos são adolescentes ou recém-saídos da adolescência e o público alvo de seus livros são os adolescentes. Que chegam à beira da histeria, o que pude observar na Bienal de São Paulo. São conhecidos como “youtubers” e sua produção literária é altamente discutível, pelo que me chega aos ouvidos, porque nunca li nada que eles tenham publicado.
Por outro lado, existem plataformas que aceitam qualquer coisa, que vendem livros digitais a preço de legumes baratos ou até os distribuem gratuitamente. É algo que nunca pensei que pudesse existir, mas estão aí...
Em segundo lugar, vamos discutir a questão das editoras. É uma questão chave que temos hoje. O que já pude observar é que os autores estão caminhando na direção da produção independente, porque muitas editoras se transformaram, na realidade, em meras gráficas. E como tal, aceitam qualquer produto, desde que os autores paguem por isso. Não se discute a qualidade do texto, não fazem revisão, não preparam o texto. Apenas publicam, entregam em sua casa uma quantidade X de exemplares e o assunto está encerrado.
Mas... e a divulgação? A parte mais essencial, que é o investimento para que o livro chegue até o leitor? Nada disso interessa. Que o autor o faça, às suas expensas! Ah... o autor quer participar de bienais? Se quiser, estaremos lá e o autor “pode comparecer”, caso queira, para “vender” seu livro. Ou seja, de autores fomos “promovidos” a vendedores. O livro é apenas um produto a mais para ser vendido. E se o autor não conseguir vendê-lo, não tem problema algum, a editora já lucrou tudo que precisava lucrar!
Este é o quadro mais dramático da história. E não se pense que é meu caso particular, porque vi e convivi com autores que tinham as mesmas críticas ou até maiores ainda. Vi, na Bienal de Brasília, uma jovem autora que se deslocou de São Paulo, para ter seu livro exposto num estande pelos dez dias (período de duração da Bienal), mas apenas no último dia a editora enviou os livros. E ainda os enviou com erros de impressão, parece que um caderno inteiro deixara de ser impresso!
O terceiro aspecto que você mencionou também é grave. O leitor. Ah! O leitor brasileiro que consome Best Sellers estrangeiros e que despreza os autores nacionais. Nunca os leu, mas não gosta. E compra os livros dos youtubers, que são nacionais. Uma contradição atrás da outra! E aí eu vejo o papel da Escola na formação de uma sociedade de leitores. Não há nada... mesmo porque milhares de professores não recebem um salário à altura de seu trabalho e não podem comprar livros de literatura. Se não os compram, não podem recomendá-los. Logo, seus alunos não irão ter a oportunidade de conhecer os clássicos e muito menos os novos. Quando se recomenda a leitura de um livro, é para fazer um trabalho tedioso, maçante... não é para discuti-lo, ouvir as várias sensações que ele poderia ter provocado nas crianças e nos jovens. Não é para deixar a imaginação fluir, voar... não, é apenas um trabalho para garantir uma nota e nada mais. Triste realidade a nossa.
E o descalabro chega ao ponto de professores que lecionam Língua Portuguesa indicarem como leitura... autores estrangeiros!
(MN): Apesar de você ter concluído a entrevista com uma declaração que traz em si a continuidade dessa conversa, Ricardo Faria, você nos trouxe reflexões importantíssimas sobre a Educação no Brasil do nosso tempo. Também sobre a Ditadura Militar e sobre o estado atual de coisas. Além de nos trazer reflexões sobre a atual situação do escritor no Brasil. Concluo aqui a entrevista, mas sempre resta a curiosidade sobre a biblioteca do entrevistado. A biblioteca interiorizada, aquela que vem nos nichos da memória, liberados de todo tipo de ditaduras. Convido o leitor desta página a ler seu romance, O amor nos tempos do AI-5, em que, além de toda a trama e do painel de época, traz os trechos onde você contempla o leitor com alguns desses títulos.
Percebo agora que poderíamos ter abordado aqui a acepção dicionarizada de uma nova palavra, a “pós-verdade”, gostaria de conhecer sua percepção do significado do termo. Da relação do termo e as diversas interpretações dadas aos fatos em um tempo de não-leitores e de novas mídias convivendo com as antigas. De estar voltando o tempo de“receitas de bolo” publicadas nos jornais, para substituir blocos de notícias que teriam sido censuradas, mas em formulação um pouco mais sofisticada pelas teorias atuais de persuasão que prometem convencer o leitor de qualquer coisa que se desejar. Na marra. De ter voltado uma das inversões clássicas do Totalitarismo, a ficção publicada nos jornais e a realidade exposta na Literatura.
Deixo com vocês um trecho da obra. E que vivam as bibliotecas.
“Dirigiu-se à biblioteca. Apesar de entusiasmada com os livros, Haidée ainda não havia examinado com atenção todos os títulos. (...) Havia uma prateleira, a mais alta, com alguns livros que, de onde ela estava, não conseguia ler os títulos. Curiosa, pediu uma escada à Conceição e, a pretexto de passar o espanador nos livros, foi examinar. Eram livros (...) de conteúdo erótico. Havia o Decamerão, de Boccaccio; O amante de lady Chatterley, de D.H. Lawrence; Trópico de câncer, de Henry Miller; Justine, Os infortúnios da virtude, do Marquês de Sade; História do O, de Pauline Réage; O romance da luxúria, de William Lazenby; As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos; Lolita, de Vladimir Nabokov; Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus pecados e seus amores, de Nelson Rodrigues; também dele, as peças Bonitinha, mas ordinária e Os sete gatinhos; havia ainda O crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz; História do olho, de Georges Bataille e vários outros.”
( Ricardo Faria. O amor nos tempos do AI-5. São Paulo: Novo Século, 2015, p.294)
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