Por Bruno Cirillo
Já
dizia mestre Cândido, parafraseando Drummond: “É feia. Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” A literatura brasileira,
vista pelo grande crítico como “galho secundário da portuguesa, por sua
vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”, só pode ser amada
pelos brasileiros, porque “se não o fizermos, ninguém o fará por nós”.
Os livros de contos de Wesley Barbosa (O diabo na mesa dos fundos) e Paulo Junior (São Bernardo sitiada)
são uma boa amostra do que tem sido feito ao largo das grandes
editoras. Impressos com a insígnia de casas jovens, ambos trazem vozes
das ruas, a linguagem afiada dos botecos, das esquinas, da prosa mais
corriqueira e desbocada, ignorando e rejeitando, por princípio estético,
tons eruditos ou cosmopolitas. Se Lima Barreto retratou a hipocrisia do
seu tempo, também objeto de estudo de Machado de Assis, este mais
sutil, os cronistas da literatura marginal de hoje em dia trabalham com o
resultado dessa hipocrisia: violência e morte.
Barbosa
escreve para o seu tempo (contos curtos, concisos e brutais), do seu
lugar (a periferia de São Paulo), com personagens extremamente
realistas. Lúcida voz que surge, já na 7ª série, de uma escola pública
de Itapecerica da Serra, estranhado por todos os amigos, solitário,
transitando entre a sala de aula e a biblioteca. “O ato de escrever:
matar um acadêmico por dia, uma forma de me manter vivo e controlar
minha loucura por meio das palavras”, explica. Numa época em que o
amadorismo literário se embaraça em prosas fragmentadas, egocêntricas e
às vezes incompreensíveis, revelando autores frágeis e deprimidos,
Barbosa é como o arbusto que resiste no meio de um cruel temporal.
Seu
primeiro conto, “Parada para o almoço”, engancha de cara o leitor. Um
homem elegante oferece pagar o almoço para o rapaz franzino, sem saber
que ele é, na verdade, o dono do restaurante. Com a sensibilidade
aguçada e o fator camaleão dos escritores, inclusive no desenvolvimento
do eu lírico feminino, quando escreve em primeira pessoa como se fosse
“A rainha da zona”, Barbosa mantém o fôlego até o final do livro. Boa
parte do que se lê pode ser interpretado não como obra individual, mas
um coletivo encarnado nas letras. O conto que dá o título é uma horrenda
história de assassinato, para lembrarmos que as coisas vão mal.
“A maioria das histórias, dos contos de O diabo na mesa dos fundos,
são memórias da infância, das leituras dos filósofos e romancistas”,
conta Barbosa, que tem predileção por Dostoievski e considera Ulisses,
da Odisseia, como o seu primeiro herói. “Aprendi a admirar muitos
escritores e guardar seus nomes na memória”, conta o autor em “Os
escritores me criaram”:
- Vadio! – gritavam. – Vadio! Vai trabalhar.
Escrito
ao longo de seis meses, em 2012, o livro de Barbosa foi o quinto
publicado pela editora Selo Povo, segmento da Editora Literatura
Marginal (EML), do Ferréz. O autor já está trabalhando na sua segunda
obra.
O
professor de literatura brasileira contemporânea na Sorbonne, Leonardo
Tonus, lembra que o termo literatura marginal foi criado em manchete da
revista Caros Amigos, em 2011, sob curadoria do Ferréz. “Mais
do que uma questão estética, esta terminologia expunha na época a
dimensão social e simbólica de uma produção cultural excluída do campo
literário nacional”, ele diz, citando a estética hiperealista como
característica fundamental dessa vertente, que ganhou força com a
popularização dos saraus na periferia de São Paulo a partir dos anos
1990. “É uma literatura voltada cada vez mais para a cotidianidade do
sujeito que também se expressa por uma escolha linguística menos
acadêmica, rompendo com padrões eurocêntricos”, acrescenta.
São Bernardo sitiada
As
editoras Edith e Nós, em uma coedição, lançaram na última Festa
Literária de Paraty (Flip) o livro de contos do jornalista Paulo Junior,
vencedor do Prêmio Toca de Literatura 2017, São Bernardo sitiada,
que estará disponível para venda a partir deste mês. A história do
título, logo no início, revela o talento do autor para metáforas,
descrevendo um cenário brutal de maneira abstrata, recorrendo a cores,
texturas e imagens aleatórias para expressar o ambiente em que se
encontra. O leitor precisa ter o mínimo de sensibilidade poética se
quiser extrair dali os sentidos mais profundos. Esse recurso estilístico
é menos utilizado nos outros contos, de uma estética mais concreta.
Paulo
Junior escreveu parte das histórias em oficinas com o escritor Ronaldo
Bressane, autor das orelhas do livro – oficinas que Junior reconhece
como emuladores da escrita do anfitrião -; a outra parte foi criada em
meio a reuniões com outros escribas sob as asas de Marcelino Freire, o
poeta pernambucano. “Nunca tinha levado a sério a ideia de oficinas de
escrita, só de pensar naquela turma competindo quem lê Hemingway no
original ou qual vai ser a primeira intervenção onde alguém vai dizer
que aquilo é meio, sei lá, kafkiano”, ironiza ele em um dos contos,
quando conta que resolveu aderir aos cursos após um episódio de fracasso
amoroso.
Uma
das qualidades do autor é a capacidade de acelerar e diminuir o tempo
das narrativas, revelando um apego pela forma, sem perder jamais as
sacadas lúdicas e o ritmo quase falado em cenas que poderiam, na pena de
outro autor, se prolongar em detalhes e descrições mais densas,
precisas e detalhistas: “A rua das Estribeiras parece a perna ralada de
um motoboy que caiu na marginal.” Sua clara intenção é passar sensações
suburbanas, e não fazer tricô à moda do século 19.
Assim como em O diabo na mesa dos fundos, roubos e assassinatos são recorrentes em São Bernardo sitiada.
Por exemplo, em “A última cena”, dois ladrões ficam presos em um
elevador enquanto a moreninha do 12 trepa com o surfista chapado do 34
nas escadas do prédio. Eles são alvejados por um policial que também
morre baleado na troca de tiros. “Moreninha goza de susto. O surfista,
pau pra fora, tropeça no conhaque antes de chegar à cena do crime.”
Metalinguagem: a história vira script de teatro nas mãos da moreninha.
Ela fica famosa, mas somente na sua própria imaginação.
O
melhor conto do livro ficou pro final. Linda, indubitável referência à
Linda King, mulher do Bukowski, rouba a navalha criminosa dos outros
contos e deixa um corte ainda mais profundo no peito do narrador. É
quase como se ali estivesse a verdadeira justificativa para o trabalho
de escritor. Ali também Paulo Junior mostra todas as frustrações vividas
por jornalistas, escritores, enfim, toda a patuleia da escrita sem
retaguardas. O velho Buck vem à tona, escancarado: o heroísmo está no
aprendizado dos percalços suburbanos e na mais inflexível dureza
editorial. Pra piorar, uma mulher despedaça o coração de quem recolhe
suas lembranças como se fossem água escorrendo pelos dedos,
irreversível. E o Palmeiras apanhando no campeonato – Linda era
corintiana.
O amor é um cão dos diabos, mas rende boas páginas.
Antes
de morrer, neste ano, Antonio Cândido declarou que não lia nada novo
havia vinte anos. Ele preferia os autores consagrados. Talvez quisesse
dizer que devemos estar atentos aos romances para entender que a grande
literatura pretende ser imortal. Não à maneira de um arbusto em chamas,
mas como árvore capaz de atravessar os séculos, em nome da raça humana.
“Cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político. E o dever da
atual geração? Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de foguete danado.”
(fonte: http://outraspalavras.net/brasil/marginais-numa-literatura-que-precisamos-amar/)
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