Em “Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa,
1850-2000” (Editora Perseu Abramo, 2005), Geoff Eley relata o caso de Edith
Lanchester, que, em outubro de 1895, comunicou à família “sua intenção de ir
viver com James Sullivan numa união de “amor livre”: estavam apaixonados e se
opunham por princípio ao casamento como instituição social porque ele destruía
a independência das mulheres”. Lanchester e Sullivan militavam no Partido
Socialista Britânico, fundado em 1884. “Ele, um operário autodidata de origem
irlandesa; ela, a filha com educação universitária de uma próspera família
londrina de classe média” (p.37).*
A reação dos homens da família à decisão da jovem socialista foi
violenta:
“No dia anterior ao início da união livre, o pai de Edith e três
irmãos vieram aos seus aposentos acompanhados pelo doutor George Fielding
Blandford, um conhecido especialista em doenças mentais. Depois de uma curta
reunião, durante a qual Blandford discutiu com Edith a questão do casamento,
invocando as prováveis consequências do nascimento de filhos e os perigos de
ser abandonada, ela reafirmou calmamente sua decisão. Blandford se retirou e
assinou um atestado de insanidade em favor da família, com o que os irmãos
arrastaram Edith para fora de casa, jogaram-na numa carruagem, amarraram seus
pulsos e a deixaram numa instituição privada do sul de Londres. Apesar de seus
protestos, o médico responsável a internou. O objetivo era salvá-la do
“suicídio social” e da “completa ruína”, como explicou Blandford, porque “seu
cérebro fora prejudicado pelas reuniões e [pelos] textos socialistas”[1] (Ibidem).
À atitude patriarcalista do pai e irmãos de Edith Lanchester
soma-se o absurdo do amparo pretensamente científico da autoridade médica. A
pretensa neutralidade da ciência revela-se mero engodo que reforça a ideologia
machista-patriarcalista. É clara a motivação familiar de impedir a qualquer
custo o intento da jovem. Mas quais seriam as reais motivações do referido
doutor em oferecer resguardo à família para o encarceramento de Edith? A
solidariedade masculina, o interesse monetário? Ainda que sejamos transigentes
e levemos em consideração que os algozes acreditassem que, apesar de toda a
violência, agiam por uma boa causa, isto é, para salvar a vítima, nada
justifica a atitude opressiva. O mais grave é que ações deste tipo são
legitimadas pela predominância da cultura machista na sociedade. Com efeito,
mesmo nos tempos atuais não é difícil encontrar discursos e práticas que
terminam por culpabilizar a vítima.
Felizmente, há resistências. A Federação Socialdemocrata (SDF) e
o público contrário à prisão da jovem Edith protestaram:
“Sullivan requereu um habeas
corpus e alertou a imprensa; organizaram-se reuniões públicas
em favor de Lanchester dirigidas pelos líderes do movimento; e alguns
militantes da SDF passaram a noite diante do hospital. Em resposta ao
requerimento, dois especialistas em loucura declararam que Edith tinha a mente
sã, ainda que desorientada, e ordenaram que ela tivesse alta, o que só
aconteceu depois de alguma demora” (p. 37-38).
Edith, finalmente, foi libertada. Após o ocorrido, ela rompeu
com a família e deu sequência a seu propósito. Ela foi proibida de lecionar,
devido às suas posições socialistas, e qualificou-se como secretária, chegando
a trabalhar com a filha de Karl Marx, Eleanor Marx, nos anos de 1896-98. “A
união dos dois durou toda a vida; ele morreu em 1945; ela, em 1966. Sua segunda
filha, Elsa Lanchester Sullivan (nascida em 1902), tornou-se atriz conhecida”,
nota o historiador Geoff Eley (Ibidem, p.574).
O “caso Lanchester” teve ampla repercussão e provocou intenso
debate internamente e fora do público socialista. As manifestações no interior
da social-democracia refletem seus limites. Como ressalta Eley (p. 38):
“A própria SDF defendeu os direitos de Lanchester, mas, apesar
de condenar seu sequestro e o abuso da lei e de concordar com a sua crítica do
casamento, defendeu a observância pragmática do “mundo como ele é” e criticou a
“ação anarquista” individual ou “revolta pessoal”.[2] O partido estava mais preocupado em
se dissociar das doutrinas do “amor livre”: elas alienavam possíveis novos
membros, inflamavam o público em geral e, impropriamente, introduziam questões
pessoais na política.”
A crítica esboçada pela SDF revela o cuidado com a imagem
perante a sociedade e, simultaneamente, a postura transigente diante dos
valores predominantes à época – os quais encontravam eco no interior da
social-democracia. É o tributo que a liderança social-democrata concede à
sociedade patriarcalista com o intuito de resguardar o partido do radicalismo
e, assim, conquistar apoio e adesões. Com efeito, o proletariado masculino
encontra-se imerso na ideologia patriarcal – mesmo os militantes
revolucionários não estão imunes ao machismo.
Não obstante, o “caso Lanchester” mostra que a posição
pragmática e cuidadosa dos líderes socialdemocratas não é unânime. Ainda que
minoritários, há os que aplaudem o “exemplo nobre e altruísta” de Lanchester
como um golpe contra esta era de hipocrisia”. O semanário socialista
independente Clarion,
de Robert Blatchford, declarou: “Os socialistas acreditam que a mulher tem o
direito de fazer o que quiser com o próprio corpo […] desafiando tabus, leis,
costumes e os bem-pensantes” (apud in ibidem, p. 38). Havia, então, “um meio
radical muito mais variado, em que se incentivava a dissidência cultural”, afirma
Eley (ibidem).
A polêmica em torno do “caso Lanchester” revela a força do
ideário machista dominante na sociedade e sua influência na militância
revolucionária. Ao mesmo tempo, expõe a crítica radical aos valores
burgueses-patriarcais. Embora esta postura seja significativa, apesar de
minoritária, e sua presença possa ser identificada em diferentes épocas e
contextos do movimento operário, o elemento predominante é o machismo –
reproduzido, inclusive nas relações de gênero internas ao campo socialista.
Mesmo líderes e militantes que reconhecem a opressão masculina e apoiam a luta
pela emancipação feminina, terminam por secundarizar e atrelar a resolução das
desigualdades de gênero à questão de classe. Assim, a emancipação das mulheres
é adiada para o horizonte da futura sociedade socialista. Foi preciso que as
mulheres se organizassem em torno dos seus próprios interesses e rompessem com
o discurso da primazia da luta de classes, ainda que reconheçam sua
importância.
Contudo, mesmo com o fortalecimento da luta das mulheres, os
argumentos da SDF ainda ecoam no presente. Salvo exceções, as relações de
gênero, em todas as esferas sociais, permanecem pautadas pela opressão
masculina e subordinadas à cultura machista, dissimulada ou explícita.
Infelizmente, outros capítulos desta triste história continuam a ser escritos.
O “caso Lanchester”, a despeito do passar dos anos, é atualizado
cotidianamente, ainda que sob outras formas de opressão, como a violência
doméstica e o feminicídio.
* As
citações são de: ELEY, Geoff. Forjando
a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000. São
Paulo: Editora Perseu Abramo, 2005.
[1] Ver:
HUNT, Karen, Equivocal
feminist: the Social Democratic Federation and the woman
question, Cambridge, Inglaterra, Cambridge University Press, 1996, p. 96,
citado por ELEY.
[2] Em
nota, o autor escreve (p. 574): “Foi esse o comentário editorial no semanário
da SDF, Justice,
de 2 de novembro de 1895”.
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