quarta-feira, 15 de maio de 2019

Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa

Em “Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000” (Editora Perseu Abramo, 2005), Geoff Eley relata o caso de Edith Lanchester, que, em outubro de 1895, comunicou à família “sua intenção de ir viver com James Sullivan numa união de “amor livre”: estavam apaixonados e se opunham por princípio ao casamento como instituição social porque ele destruía a independência das mulheres”. Lanchester e Sullivan militavam no Partido Socialista Britânico, fundado em 1884. “Ele, um operário autodidata de origem irlandesa; ela, a filha com educação universitária de uma próspera família londrina de classe média” (p.37).*


A reação dos homens da família à decisão da jovem socialista foi violenta:
“No dia anterior ao início da união livre, o pai de Edith e três irmãos vieram aos seus aposentos acompanhados pelo doutor George Fielding Blandford, um conhecido especialista em doenças mentais. Depois de uma curta reunião, durante a qual Blandford discutiu com Edith a questão do casamento, invocando as prováveis consequências do nascimento de filhos e os perigos de ser abandonada, ela reafirmou calmamente sua decisão. Blandford se retirou e assinou um atestado de insanidade em favor da família, com o que os irmãos arrastaram Edith para fora de casa, jogaram-na numa carruagem, amarraram seus pulsos e a deixaram numa instituição privada do sul de Londres. Apesar de seus protestos, o médico responsável a internou. O objetivo era salvá-la do “suicídio social” e da “completa ruína”, como explicou Blandford, porque “seu cérebro fora prejudicado pelas reuniões e [pelos] textos socialistas”[1] (Ibidem).
À atitude patriarcalista do pai e irmãos de Edith Lanchester soma-se o absurdo do amparo pretensamente científico da autoridade médica. A pretensa neutralidade da ciência revela-se mero engodo que reforça a ideologia machista-patriarcalista. É clara a motivação familiar de impedir a qualquer custo o intento da jovem. Mas quais seriam as reais motivações do referido doutor em oferecer resguardo à família para o encarceramento de Edith? A solidariedade masculina, o interesse monetário? Ainda que sejamos transigentes e levemos em consideração que os algozes acreditassem que, apesar de toda a violência, agiam por uma boa causa, isto é, para salvar a vítima, nada justifica a atitude opressiva. O mais grave é que ações deste tipo são legitimadas pela predominância da cultura machista na sociedade. Com efeito, mesmo nos tempos atuais não é difícil encontrar discursos e práticas que terminam por culpabilizar a vítima.
Felizmente, há resistências. A Federação Socialdemocrata (SDF) e o público contrário à prisão da jovem Edith protestaram:
“Sullivan requereu um habeas corpus e alertou a imprensa; organizaram-se reuniões públicas em favor de Lanchester dirigidas pelos líderes do movimento; e alguns militantes da SDF passaram a noite diante do hospital. Em resposta ao requerimento, dois especialistas em loucura declararam que Edith tinha a mente sã, ainda que desorientada, e ordenaram que ela tivesse alta, o que só aconteceu depois de alguma demora” (p. 37-38).
Edith, finalmente, foi libertada. Após o ocorrido, ela rompeu com a família e deu sequência a seu propósito. Ela foi proibida de lecionar, devido às suas posições socialistas, e qualificou-se como secretária, chegando a trabalhar com a filha de Karl Marx, Eleanor Marx, nos anos de 1896-98. “A união dos dois durou toda a vida; ele morreu em 1945; ela, em 1966. Sua segunda filha, Elsa Lanchester Sullivan (nascida em 1902), tornou-se atriz conhecida”, nota o historiador Geoff Eley (Ibidem, p.574).
O “caso Lanchester” teve ampla repercussão e provocou intenso debate internamente e fora do público socialista. As manifestações no interior da social-democracia refletem seus limites. Como ressalta Eley (p. 38):
“A própria SDF defendeu os direitos de Lanchester, mas, apesar de condenar seu sequestro e o abuso da lei e de concordar com a sua crítica do casamento, defendeu a observância pragmática do “mundo como ele é” e criticou a “ação anarquista” individual ou “revolta pessoal”.[2] O partido estava mais preocupado em se dissociar das doutrinas do “amor livre”: elas alienavam possíveis novos membros, inflamavam o público em geral e, impropriamente, introduziam questões pessoais na política.”
A crítica esboçada pela SDF revela o cuidado com a imagem perante a sociedade e, simultaneamente, a postura transigente diante dos valores predominantes à época – os quais encontravam eco no interior da social-democracia. É o tributo que a liderança social-democrata concede à sociedade patriarcalista com o intuito de resguardar o partido do radicalismo e, assim, conquistar apoio e adesões. Com efeito, o proletariado masculino encontra-se imerso na ideologia patriarcal – mesmo os militantes revolucionários não estão imunes ao machismo.
Não obstante, o “caso Lanchester” mostra que a posição pragmática e cuidadosa dos líderes socialdemocratas não é unânime. Ainda que minoritários, há os que aplaudem o “exemplo nobre e altruísta” de Lanchester como um golpe contra esta era de hipocrisia”. O semanário socialista independente Clarion, de Robert Blatchford, declarou: “Os socialistas acreditam que a mulher tem o direito de fazer o que quiser com o próprio corpo […] desafiando tabus, leis, costumes e os bem-pensantes” (apud in ibidem, p. 38). Havia, então, “um meio radical muito mais variado, em que se incentivava a dissidência cultural”, afirma Eley (ibidem).
A polêmica em torno do “caso Lanchester” revela a força do ideário machista dominante na sociedade e sua influência na militância revolucionária. Ao mesmo tempo, expõe a crítica radical aos valores burgueses-patriarcais. Embora esta postura seja significativa, apesar de minoritária, e sua presença possa ser identificada em diferentes épocas e contextos do movimento operário, o elemento predominante é o machismo – reproduzido, inclusive nas relações de gênero internas ao campo socialista. Mesmo líderes e militantes que reconhecem a opressão masculina e apoiam a luta pela emancipação feminina, terminam por secundarizar e atrelar a resolução das desigualdades de gênero à questão de classe. Assim, a emancipação das mulheres é adiada para o horizonte da futura sociedade socialista. Foi preciso que as mulheres se organizassem em torno dos seus próprios interesses e rompessem com o discurso da primazia da luta de classes, ainda que reconheçam sua importância.
Contudo, mesmo com o fortalecimento da luta das mulheres, os argumentos da SDF ainda ecoam no presente. Salvo exceções, as relações de gênero, em todas as esferas sociais, permanecem pautadas pela opressão masculina e subordinadas à cultura machista, dissimulada ou explícita. Infelizmente, outros capítulos desta triste história continuam a ser escritos. O “caso Lanchester”, a despeito do passar dos anos, é atualizado cotidianamente, ainda que sob outras formas de opressão, como a violência doméstica e o feminicídio.
* As citações são de: ELEY, Geoff. Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2005.
[1] Ver: HUNT, Karen, Equivocal feminist: the Social Democratic Federation and the woman question, Cambridge, Inglaterra, Cambridge University Press, 1996, p. 96, citado por ELEY.
[2] Em nota, o autor escreve (p. 574): “Foi esse o comentário editorial no semanário da SDF, Justice, de 2 de novembro de 1895”.

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