|
"A Vida Invisível de
Eurídice Gusmão" é sobre um Rio de Janeiro dos anos 40. É sobre o
conservadorismo da sociedade brasileira naquela época. É sobre, obviamente, a
submissão das mulheres (ou a opressão dos homens) dentro daquele contexto. É
sobre família. É sobre casamento. É sobre mãe e filhos. Mas é, sobretudo, sobre
a submissão das mulheres (ou a opressão dos homens), naturalizada, entranhada
na sociedade brasileira desde os anos 40.
Porque não é só sobre os
anos 40. É sobre os 50, os 60. Sobre hoje, plenos anos 20 do século 21. Quase
um século passou desde o retratado neste livro de Martha Batalha. Muita coisa
mudou, mas quase nada mudou.
É menos difícil de as
mulheres trabalharem, como tanto queria a inteligente Eurídice. Mas é tão comum
quanto antes serem julgadas por questões de costumes. "Deu antes do
casamento?" "É puta." "Não casou na igreja?" "É
vadia." "Não seguiu o que estava no script?" "É
burra." Exótica, vá lá.
Curioso que nenhum desses
rótulos é aplicado quando o julgado da vez é homem.
Este livro pequeno, de
apenas 188 páginas (que são plenamente possíveis de ler em um só dia, mas que
eu, com minha rotina extenuante trabalho-filho-filho-trabalho, levei quase um
mês pra ler, poucas páginas por noite, logo antes de dormir), traz muitas
passagens preciosas, e de linguagem ágil, fluida, coesa, que nos transporta
para vidas de personagens que surgem do nada, sem pedir licença. Mas uma de
minhas favoritas é esta:
"Que linda", disse
um anjo que estava por perto.
"Linda, eu?",
disse Filomena, e o anjo disse "linda sim, você", e lhe entregou um
espelhinho. Filomena viu sua pele perfeita e seus dentes brancos. Ficou tão
feliz que deu um beijo no primeiro que viu na frente.
"Isso são modos,
Filomena?"
"São modos sim, o
senhor sabe que são!", ela disse, gargalhando.
"Tá certo,
Filomena", disse São Pedro. "Seja bem-vinda. Seus oito anjinhos estão
ali na frente te esperando."
Ele sabia que sim, aqueles
eram os modos no céu. São Pedro também riu muito quando chegou e viu sua
própria cara limpa. Precisava ver como eram seus dentes na Terra. Ou suas
marcas de sífilis.
Tem duas coisas de que eu
gosto nesta passagem, em especial. Uma, o destaque para as pessoas que
gargalham, as pessoas que sabem ser felizes e fazer o bem aos outros, mesmo
quando não têm nem o mínimo. De todas as personagens espetaculares deste livro,
Filomena ganhou um lugar especial no meu coração. Minha favorita, por sua
leveza, por sua alma de Luiza.
A outra é o tapa na cara
que a autora dá nos católicos mais ensandecidos, aqueles bem fanáticos mesmo,
destes da era do Bolsonaro, que não se lembram das passagens da Bíblia que
mostram Jesus abraçando prostitutas e mendigos com humildade e afeto. São Pedro
tinha sífilis, diz a autora do livro, o que não tem nada a ver com a bondade de
seu coração. Viva santa Filomena!
E Santa Guida! E Santa
Eurídice! As duas protagonistas desta história, que tem várias histórias dentro
de si, são irmãs mas quase opostas em personalidade, em destino, em objetivo de
vida. Mas, ao mesmo tempo, têm tanto em comum – como, de resto, quase todas as
mulheres, de todas as épocas, lugares e gerações.
Leio que Martha Batalha, a
tataraneta do criador da cerveja Tupã (e autora deste livro incrível), largou a
vida que levava para escrever um livro. Ou alternou a rotina que tinha com os
tec-tecs da máquina de escrever. Este é seu livro de estreia. E o trem é tão
bom que de cara já virou filme e o filme já ganhou um prêmio importante no mais
importante prêmio do cinema mundial, o Festival de Cannes. Não é
pouca bosta, não!, diria (ou talvez dirá) minha mãe.
Já a Eurídice do livro de
Martha tem ideias suficientes para livros dignos do Nobel e filmes dignos do
Oscar e fica sempre empacada pelo marido tacanho, pela sociedade tacanha, pelo
mundo apertado para as mulheres, que vigora até hoje. Eurídice tem potencial
para conquistar o mundo. Sua irmã Guida também, à sua maneira. Mulheres
guerreiras, inteligentes, lindas. Mas tolhidas. Como somos tantas de nós, com
nossos potenciais represados.
Quantas décadas terão que
se passar para que isso mude? Desconfio que todas, todas as décadas.
(E cada vez mais todas, com
este mundo em retrocesso.)
“A Vida Invisível de
Eurídice Gusmão”
Martha Batalha
Companhia das Letras
188 páginas
De R$ 30.65 a R$ 47,90
(fonte: blog da Kika Castro)
Martha Batalha
Companhia das Letras
188 páginas
De R$ 30.65 a R$ 47,90
Nenhum comentário:
Postar um comentário