Maria Cristina Vilela me enviou uma lúcida resenha de meus dois romances, e sua visão focou nas personagens femininas. Confiram:
A
leitura do romance de Ricardo Faria – O amor nos tempos de A.I.5 - me
proporcionou um turbilhão de sensações: alegria, prazer, ansiedade,
curiosidade, inquietude, medo, e sobretudo ternura, pois é de um amigo pelo
qual tenho enorme carinho. É um carinho destes recheados de respeito,
admiração, amizade, encantamento e tantos outros sentimentos com os quais só as
pessoas especiais podem nos presentear.
Confesso
que até a metade da leitura, a narrativa me causou um certo tédio, uma inquietação
angustiante. Dava-me a impressão de que a vida daquelas pessoas se resumiria
num cotidiano sem fim, tramado sob um dia a dia sem surpresas, sem novidades,
num levantar, comer e dormir. Senti-me como lendo “Cem anos de solidão”. Contudo,
à medida que a leitura avançava, comecei a perceber como aqueles personagens,
que à primeira vista pareciam tão previsíveis, tinham uma riqueza psíquica profunda,
que os permitiu tecerem uma vida nada convencional diante de um contexto histórico
tão sombrio. Em tempos obscuros, afinal a ficção se passa sob a ditadura
militar, viver de forma tão rotineira e pachorrenta, parecia ser a medida
possível da existência. No entanto,
Afonso, Celina e Haydée se esgueiraram pelos becos e curvas da vida e moldaram
uma existência deliciosamente transgressora, recheada de erotismo, de sexo e de
gozos intermináveis. Assim, em seus corpos totalmente sexualizados, subverteram
toda uma ordem marcadamente opressora em um rito de experiências absolutamente libertadoras.
Naqueles
tempos quando tudo era proibido e nada parecia possível, este trio usou seus
corpos como vias, como lugares da subversão. O corpo como objeto em si, aquele
que recebe e faz a transgressão, talvez seja um dos atos mais revolucionários
que se possa imaginar naqueles tristes dias de chumbo. E assim, ao longo da
narrativa, fomos nos aproximando, aprendendo a amar aquelas pessoas, que
ousadamente criaram uma surpreendente e deliciosa forma de resistir a tanta
opressão.
Com
isso, aquela trama foi ganhando novos contornos. Comecei a perceber a riqueza
psíquica de cada um, manifestada em atos que só podem ocorrer em pessoas cujas
subjetividades são insondáveis, são vastas, indomáveis, e mesmo assim, apenas
podemos supor.
O trio que vai protagonizar a narrativa,
Afonso, Celina e Haydée é cativante e único. Afonso, sem dúvida, é um homem
brilhante e sensível. Como professor universitário de História, espera-se que
suas atitudes sejam mais progressistas, moldadas por ações mais abertas ao
diálogo. Catalisa em si um espirito de liberdade. Haydée, uma jovem
universitária, voltada ao debate das esquerdas, filha do movimento hippie, é
protótipo de uma boa parcela da juventude da época. Impregnada pela recente
liberdade conquistada pelos movimentos da contracultura dos anos sessenta, é
encantadoramente livre e fiel aos seus princípios, a ponto de morrer por eles. Assim
viveu e assim morreu, devotada aos seus princípios.
Contudo,
foi Celina a personagem surpresa desta trama. Mulher moldada para ser nada mais
que a mulher de Afonso, nos surpreendeu de tal forma que foi impossível não se
apaixonar por ela. Celina me inquietava a cada página lida. Todos os traços da
sua previsibilidade foram rompidos de forma, diria eu, abrupta, mas serena. Foi
capaz de romper com leveza e ternura com toda a bagagem triste e sombria que
até então tinha recebido.
Como uma mulher oriunda de uma família
absolutamente conservadora, de um pai militar, que se manteve virgem até o
casamento, e até então, havia experimentado sua sexualidade apenas com Afonso,
conseguiu mudar de forma tão radical sua vida afetiva e amorosa? Como ela refez
sua subjetividade a ponto de romper com aquela mulher tímida, insegura e
submissa, cujas experiências sexuais se restringiam a seu casamento, levando-a
a experimentar e a viver sua sexualidade de forma tão intensa e livre?
Para
entender Celina, e assim, as rupturas que ela própria se impôs, de forma tão
serena, é preciso traçar um pouco de sua trajetória. Ora, em tempos de
opressão, quando a palavra de ordem é proibir, censurar, Celina buscou em si
todas as formas de rupturas. Foi uma travessia consigo mesma, de idas e vindas
num intenso refazer, que lhe permitiu tamanha inflexão. Mas afinal quem era Celina?
Celina
é oriunda de uma família bem ao estilo das famílias mineiras. Foi educada sob
as regras de uma família patriarcal. O pai além de conservador, machista e opressor,
era militar partidário da linha dura do exército. A mãe nunca se viu como
agente de sua vida. Viveu sujeitada sob os mandos do marido, como uma sombra
que acabou por morrer de tristeza diante do descaso vivido no casamento.
Assim,
Celina se casa com Afonso, ainda muito jovem e virgem. Portanto, seu mundo
erótico e sexual se restringe a Afonso e as aprendizagens, se é que assim
podemos chamar, daquela família. Diante de tão reduzidas experiências, era
possível esperar que Celina reproduzisse aquela realidade vivida. Entretanto,
esta mulher nos surpreende de forma inequívoca. Em meio a questionamentos e
incertezas, o que era natural dado sua formação, ela dá conta de reinventar-se
como mulher, mãe, companheira, amiga e amante. Suas inflexões sexuais ao
participar de um trio e depois de um quarteto amoroso, nos colocam o quanto,
apesar de nossas primeiras formações, sobretudo de nossos grupos familiares,
podem ser rompidas e o quanto devemos estar abertos aos movimentos que a vida
nos proporciona. A ela atribuo toda a grandeza deste romance.
O
final do volume I me deixou inquieta e temerosa por Celina. A morte de Afonso e
Haydée de forma trágica me deixou apreensiva, pois me perguntava se aquela
mulher, embora tivesse passado por tantas transformações, daria conta de
sobreviver sem a presença daquelas pessoas que foram determinantes em suas
rupturas pessoais.
Mas,
já no início do volume II - Amor, opressão e liberdade -, ao lidar com as
demandas cotidianas impostas pela morte de Afonso, de forma fluída e
desembaraçada, Celina navegou nestes novos tempos que a vida lhe impôs com
muita maturidade, equilíbrio e tranquilidade. Mais uma vez esta mulher me
surpreendeu.
A
tarefa de criar filhos, mesmo que a dois, nunca é pequena. Sem Afonso, cuja
figura paterna era inequívoca, Celina apesar dos momentos conturbados, terminou
por transformar Nelson e Bia em seres humanos de primeira grandeza.
Com
a desenvoltura de Celina ao longo do volume II, diante das demandas
profissionais e pessoais, percebe-se o quanto aquela mulher produto de uma
sociedade conservadora e castradora foi capaz de refazer-se brilhantemente,
construindo tanto para si como para seus filhos, um modo de vida permeado pelo
carinho, compreensão, liberdade e muita sensibilidade.
Diria
que este romance pode ser lido sob várias nuances. Uma delas sob a ótica do
universo feminino. Foi capaz de trazer, fazer emergir, com Haydée e Celina o mundo
feminino em tempos de repressão e ainda, de muita opressão sobre as mulheres. Ora,
nos anos de 1960 e 70, ser mulher era estar às voltas em lutas ainda braçais
com nosso corpo, nossa sexualidade, nossos desejos, enfim nosso lugar no mundo
como sujeitos e não mais como sombras, tanto de pais, companheiros ou irmãos.
Assim,
essas personagens, um misto de ficção e realidade, nos dão de presente um
retrato fiel de como as mulheres naquele período tramaram suas vidas na
resistência e, por conseguinte, na transformação da condição da mulher.
Uma
outra, que aliás é a tônica da narrativa, nos mostra como podemos ser criativos
e sobrevivermos com dignidade e alegria sob os mais árduos tempos. Quando as
correntes da repressão nos atormentavam, no auge da ditadura militar, Afonso,
Celina e Haydée nos mostraram soberbamente que somos capazes de inventar
saídas, ainda que vividas em caminhos silenciosos e velados, as mais
transgressoras, prazerosas e ternas possíveis. Subverter aquela ordem, para além das ações
mais convencionais as quais já estamos habituados, como a luta armada, corajosamente
levada a cabo por Haydée, também pode ocorrer diretamente sob nossos corpos. Afinal
o corpo como posse de si mesmo, como o lugar do gozo, da alegria, pode
representar e objetificar o mais profundo sentido da subversão, pois como disse
Galeano, o corpo é uma festa.
Assim,
a literatura como instrumento explicativo da realidade, mais uma vez tem o
poder de conectar os caminhos trilhados por aqueles que vieram antes de nós, e
deste modo, torna-se condição indispensável para compreendermos as questões
socialmente vivas, e neste caso em particular, a condição das mulheres, o que,
ainda, há muito por fazer. Nada está acabado.
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