segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Uma resenha para meus dois romances

Maria Cristina Vilela me enviou uma lúcida resenha de meus dois romances, e sua visão focou nas personagens femininas. Confiram:



A leitura do romance de Ricardo Faria – O amor nos tempos de A.I.5 - me proporcionou um turbilhão de sensações: alegria, prazer, ansiedade, curiosidade, inquietude, medo, e sobretudo ternura, pois é de um amigo pelo qual tenho enorme carinho. É um carinho destes recheados de respeito, admiração, amizade, encantamento e tantos outros sentimentos com os quais só as pessoas especiais podem nos presentear.

Confesso que até a metade da leitura, a narrativa me causou um certo tédio, uma inquietação angustiante. Dava-me a impressão de que a vida daquelas pessoas se resumiria num cotidiano sem fim, tramado sob um dia a dia sem surpresas, sem novidades, num levantar, comer e dormir. Senti-me como lendo “Cem anos de solidão”. Contudo, à medida que a leitura avançava, comecei a perceber como aqueles personagens, que à primeira vista pareciam tão previsíveis, tinham uma riqueza psíquica profunda, que os permitiu tecerem uma vida nada convencional diante de um contexto histórico tão sombrio. Em tempos obscuros, afinal a ficção se passa sob a ditadura militar, viver de forma tão rotineira e pachorrenta, parecia ser a medida possível da existência.  No entanto, Afonso, Celina e Haydée se esgueiraram pelos becos e curvas da vida e moldaram uma existência deliciosamente transgressora, recheada de erotismo, de sexo e de gozos intermináveis. Assim, em seus corpos totalmente sexualizados, subverteram toda uma ordem marcadamente opressora em um rito de experiências absolutamente libertadoras.

Naqueles tempos quando tudo era proibido e nada parecia possível, este trio usou seus corpos como vias, como lugares da subversão. O corpo como objeto em si, aquele que recebe e faz a transgressão, talvez seja um dos atos mais revolucionários que se possa imaginar naqueles tristes dias de chumbo. E assim, ao longo da narrativa, fomos nos aproximando, aprendendo a amar aquelas pessoas, que ousadamente criaram uma surpreendente e deliciosa forma de resistir a tanta opressão.

Com isso, aquela trama foi ganhando novos contornos. Comecei a perceber a riqueza psíquica de cada um, manifestada em atos que só podem ocorrer em pessoas cujas subjetividades são insondáveis, são vastas, indomáveis, e mesmo assim, apenas podemos supor.

O trio que vai protagonizar a narrativa, Afonso, Celina e Haydée é cativante e único. Afonso, sem dúvida, é um homem brilhante e sensível. Como professor universitário de História, espera-se que suas atitudes sejam mais progressistas, moldadas por ações mais abertas ao diálogo. Catalisa em si um espirito de liberdade. Haydée, uma jovem universitária, voltada ao debate das esquerdas, filha do movimento hippie, é protótipo de uma boa parcela da juventude da época. Impregnada pela recente liberdade conquistada pelos movimentos da contracultura dos anos sessenta, é encantadoramente livre e fiel aos seus princípios, a ponto de morrer por eles. Assim viveu e assim morreu, devotada aos seus princípios.

Contudo, foi Celina a personagem surpresa desta trama. Mulher moldada para ser nada mais que a mulher de Afonso, nos surpreendeu de tal forma que foi impossível não se apaixonar por ela. Celina me inquietava a cada página lida. Todos os traços da sua previsibilidade foram rompidos de forma, diria eu, abrupta, mas serena. Foi capaz de romper com leveza e ternura com toda a bagagem triste e sombria que até então tinha recebido.

 Como uma mulher oriunda de uma família absolutamente conservadora, de um pai militar, que se manteve virgem até o casamento, e até então, havia experimentado sua sexualidade apenas com Afonso, conseguiu mudar de forma tão radical sua vida afetiva e amorosa? Como ela refez sua subjetividade a ponto de romper com aquela mulher tímida, insegura e submissa, cujas experiências sexuais se restringiam a seu casamento, levando-a a experimentar e a viver sua sexualidade de forma tão intensa e livre?

Para entender Celina, e assim, as rupturas que ela própria se impôs, de forma tão serena, é preciso traçar um pouco de sua trajetória. Ora, em tempos de opressão, quando a palavra de ordem é proibir, censurar, Celina buscou em si todas as formas de rupturas. Foi uma travessia consigo mesma, de idas e vindas num intenso refazer, que lhe permitiu tamanha inflexão.  Mas afinal quem era Celina?

Celina é oriunda de uma família bem ao estilo das famílias mineiras. Foi educada sob as regras de uma família patriarcal. O pai além de conservador, machista e opressor, era militar partidário da linha dura do exército. A mãe nunca se viu como agente de sua vida. Viveu sujeitada sob os mandos do marido, como uma sombra que acabou por morrer de tristeza diante do descaso vivido no casamento.

Assim, Celina se casa com Afonso, ainda muito jovem e virgem. Portanto, seu mundo erótico e sexual se restringe a Afonso e as aprendizagens, se é que assim podemos chamar, daquela família. Diante de tão reduzidas experiências, era possível esperar que Celina reproduzisse aquela realidade vivida. Entretanto, esta mulher nos surpreende de forma inequívoca. Em meio a questionamentos e incertezas, o que era natural dado sua formação, ela dá conta de reinventar-se como mulher, mãe, companheira, amiga e amante. Suas inflexões sexuais ao participar de um trio e depois de um quarteto amoroso, nos colocam o quanto, apesar de nossas primeiras formações, sobretudo de nossos grupos familiares, podem ser rompidas e o quanto devemos estar abertos aos movimentos que a vida nos proporciona. A ela atribuo toda a grandeza deste romance.

O final do volume I me deixou inquieta e temerosa por Celina. A morte de Afonso e Haydée de forma trágica me deixou apreensiva, pois me perguntava se aquela mulher, embora tivesse passado por tantas transformações, daria conta de sobreviver sem a presença daquelas pessoas que foram determinantes em suas rupturas pessoais.

Mas, já no início do volume II - Amor, opressão e liberdade -, ao lidar com as demandas cotidianas impostas pela morte de Afonso, de forma fluída e desembaraçada, Celina navegou nestes novos tempos que a vida lhe impôs com muita maturidade, equilíbrio e tranquilidade. Mais uma vez esta mulher me surpreendeu. 

A tarefa de criar filhos, mesmo que a dois, nunca é pequena. Sem Afonso, cuja figura paterna era inequívoca, Celina apesar dos momentos conturbados, terminou por transformar Nelson e Bia em seres humanos de primeira grandeza.

Com a desenvoltura de Celina ao longo do volume II, diante das demandas profissionais e pessoais, percebe-se o quanto aquela mulher produto de uma sociedade conservadora e castradora foi capaz de refazer-se brilhantemente, construindo tanto para si como para seus filhos, um modo de vida permeado pelo carinho, compreensão, liberdade e muita sensibilidade.

Diria que este romance pode ser lido sob várias nuances. Uma delas sob a ótica do universo feminino. Foi capaz de trazer, fazer emergir, com Haydée e Celina o mundo feminino em tempos de repressão e ainda, de muita opressão sobre as mulheres. Ora, nos anos de 1960 e 70, ser mulher era estar às voltas em lutas ainda braçais com nosso corpo, nossa sexualidade, nossos desejos, enfim nosso lugar no mundo como sujeitos e não mais como sombras, tanto de pais, companheiros ou irmãos.

Assim, essas personagens, um misto de ficção e realidade, nos dão de presente um retrato fiel de como as mulheres naquele período tramaram suas vidas na resistência e, por conseguinte, na transformação da condição da mulher.

Uma outra, que aliás é a tônica da narrativa, nos mostra como podemos ser criativos e sobrevivermos com dignidade e alegria sob os mais árduos tempos. Quando as correntes da repressão nos atormentavam, no auge da ditadura militar, Afonso, Celina e Haydée nos mostraram soberbamente que somos capazes de inventar saídas, ainda que vividas em caminhos silenciosos e velados, as mais transgressoras, prazerosas e ternas possíveis.  Subverter aquela ordem, para além das ações mais convencionais as quais já estamos habituados, como a luta armada, corajosamente levada a cabo por Haydée, também pode ocorrer diretamente sob nossos corpos. Afinal o corpo como posse de si mesmo, como o lugar do gozo, da alegria, pode representar e objetificar o mais profundo sentido da subversão, pois como disse Galeano, o corpo é uma festa.   

Assim, a literatura como instrumento explicativo da realidade, mais uma vez tem o poder de conectar os caminhos trilhados por aqueles que vieram antes de nós, e deste modo, torna-se condição indispensável para compreendermos as questões socialmente vivas, e neste caso em particular, a condição das mulheres, o que, ainda, há muito por fazer. Nada está acabado.





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