Há seis meses morria o crítico e escritor que foi parte de uma
época mítica, em que era preciso, para compreender o país, ser também
poeta. Relato de um encontro com ele
Crônica de Maria Bitarello
No fim de outubro, fui à Pinacoteca, no centro de São Paulo, visitar a exposição No subúrbio da modernidade – Di Cavalcanti 120 anos,
em comemoração ao aniversário de nascimento do pintor e fiquei
inspiradíssima. Recomendo desde já uma visita e um mergulho na obra do
carioca que foi uma espécie de cronista de seu tempo. Suas charges e
ilustrações pra revistas foram, para mim, a maior e mais deliciosa
surpresa, pois, sem se dar conta (ou se dando conta), Di foi registrando
a passagem do século 20, seus tipos e suas modas, seus políticos e suas
vedetes, suas fofocas e tabus. Um deleite. Saí de lá animada e pensando
no Antonio Candido.
Conheci o professor, sociólogo e crítico
literário pessoalmente em 2013. Eu, minha mãe e o amigo e cronista
Matthew Shirts fomos à sua casa para um bate-papo informal e passamos
uma tarde inesquecível conversando sobre literatura, História, São
Paulo, contando piadas. Na época, Candido devia ter 95 anos, mas não
havia nenhuma indicação física, mental e espiritual que confirmasse essa
hipótese. Sua memória parecia imaculada; o olhar vivo e atento; o corpo
respondia aparentemente com presteza a seu desejo de levantar e buscar
tal livro ou, até, de imitar a dança de algum personagem de uma história
que contava.
Generoso com seu tempo, o professor nos recebeu
após uma ligação da minha mãe que, na época, estudava sua
correspondência com o brasilianista Richard M. Morse,
já falecido, e que fora orientador, amigo e guru intelectual dela.
Matthew também fora seu pupilo e amigo. Já eu o conheci criança e, na
época daquela visita, traduzia alguns de seus artigos para o português,
para aquele que viria a ser o livro Cidades e Cultura Política nas Américas,
lançado esse ano pela Editora UFMG. Antonio Candido topou o encontro e
contou histórias suas com Morse, lembrou do amigo e deu sua benção (pra
nós, sagrada) ao projeto.
Umas duas semanas depois do lançamento
do livro, que aconteceu em abril desse ano, passei na portaria do prédio
do nonagenário, numa tarde de chuva, pra lhe deixar de presente um
envelope molhado com um exemplar e um bilhetinho dentro. Dali a dois
dias, em 12 de maio, Antonio Candido morreu, aos 98 anos. Eu não sabia,
mas ele já estava no hospital naquela tarde de chuva e, com certeza,
nunca recebeu o livro. Eu fiquei muito tocada com sua passagem – e tudo
isso está relacionado com a exposição na Pinacoteca.
Di
Cavalcanti, Antonio Candido e Richard Morse têm a ver com uma época
mítica, com um Brasil bem diferente. Porque, como bem disse o
antropólogo francês Roger Bastide, “o sociólogo que quiser compreender o
Brasil não raro precisa transformar-se num poeta”. E eles sabiam disso;
viviam isso. Assim como o faziam Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto
Freyre, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Cartola, Noel Rosa.
Algumas gerações de “poetas” brasileiros que coexistiram nessas
primeiras décadas do século 20.
“O mundo do meu avô era o meu
preferido (…) No mundo do meu avô a gentileza, a solidariedade e a
beleza da vida são rainhas”. Me lembrei desse trecho do belo texto escrito por sua neta, Maria Clara Vergueiro, e publicado na Folha de S.Paulo
uma semana após a morte de Antonio Candido. Ele não foi meu avô, mas
acho que entendo o sentimento dela, pois pra mim também o mundo dele (e
daquela turma) fora dos melhores. Um mundo que parece não estar em
nenhuma parte de 2017 – pra qualquer lado que se olhe.
Mas o
pessimismo não me convém. E gosto de pensar que se Antonio Candido ainda
estivesse entre nós, não desanimaria. Passaria a tarde na Pinacoteca,
na companhia dos seus, que já é um pouquinho de saúde, um merecido
descanso na loucura. Foi onde reencontrei todos eles.
(fonte: http://outraspalavras.net/brasil/antonio-candido/)
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