Recebi, esta semana, mais uma resenha do meu romance O Amor nos tempos do AI-5. Como já disse no Facebook, esta me tirou o fôlego... acompanhem!
Ricardo Faria leitor
de Flaubert
... a sensação de que o ouvinte estava de fato dentro de
um barco
a
navegar num lago calmo, parecia ter sido
concluída muito rápido
e o
que vinha em seguida, sons mais tumultuados, tornou-se mais
perceptível,
causando um grande incômodo.
R.
Faria. In:Amor nos Tempos do AI 5 .p.7
A sensação de incômodo permanece durante toda
a narrativa no romance do Ricardo Faria porque não é possível abordar o tema e
os seus detalhes sem provocar um
certo mal estar. O
permanente mal estar anunciado por Freud e analisado pelo Marcuse, com as
nossas memórias universitárias sempre presentes em cada momento de nossa
análise. E o autor não nos poupa detalhes, circunstâncias, minúcias,
descrições, provocações. As dificuldades de ser contemporâneo de si mesmo. O
permanente mal estar nessa nossa civilização em final de modelo. A todo momento o leitor desconfia, no interior da
narrativa, que ele é um professor universitário narrando o próprio ambiente. Mora em Belo Horizonte e transita em seu
fusquinha azul. Vai ao cinema com a Celina, vê Casablanca e o Sam play it...
Mas, os romancistas podem ambientar a sua trama em lugares diversos do
seu e torná-la convincente ao olhar do leitor Não é necessário morar em Ruão
para sentir o tédio que a Emma Bovary sente e é descrito por Flaubert, depois,
retomado pelo Sartre em As Palavras.
Ou conhecer Paris para entender a Simone de Beauvoir transitando em Montparnasse. Como se não bastasse, o
Ricardo Faria reverencia Garcia Marques e
adota o Amor nos Tempos de... Há um certo gosto existencialista
no interior da narrativa quando a Celina,
mocinha filha de militar, dona de casa prendada. Como num poema contemporâneo,
como num romance atual... Celina trabalha, faz compras. Namora. Casou mas não
morreu...
O texto do Ricardo Faria, transversalmente dominado pelo tema do desejo
se expõe , para nós os seus leitores como um relato de atualidades. Cita os
temas e os textos do Chico Buarque de Holanda. Não fosse ele um homem de seu
tempo – ser de desejo. Um professor, uma aluna. Não: um homem uma mulher. Nos personagens, em seus nomes de
escolha – Haydée.
O ambiente descrito pelo autor é todo marcado pela trama das
escolas com os seus horários, frases interrompidas, lugares marcados. Cafezinho
de garrafa pouco térmica, encontros incômodos, silêncios e frases atravessadas,
olhares. Alguns amores secretos e outros
nem tanto. Porque a trama amorosa é
muito visível, quase palpável. É possível ver no ar a energia que emana dos
olhares, das palavras, das reticências.
E os comentários paralelos com as respectivas bocas torcidas e lábios gritando
silêncios.
O fato do Flaubert ser um dos
meus mais amados autores não é o motivo pelo qual afirmo que o Ricardo Faria Leitor é leitor de
Flaubert. São os modos, as narrativa de ambos. O primeiro – uma longa e
minuciosa construção de ambientes, circunstâncias sem qual quer preocupação com
a agilidade no texto. Emma se olha ao espelho. Emma vai ao baile. Emma encontra
o Rodolfo, lê romance. De repente a
narrativa se precipita num corte rápido e em poucas páginas o autor resolve o
destino de Berta a linda filha do casal Charles e Emma. A morte ao modelo
século XIX. Berta morre tuberculosa.
Assim também o Ricardo Faria. Depois das descrições da
rotina universitária, dos temas abordados em História Contemporânea, de um
mural que fez história. Dos detalhes ao modo realista na descrição: encontros
do professor/amante e da sua amada/ namorada/ aluna em suas amorosidades
explícitas. E das crianças enviadas para brincar na casa do visinho, da
solícita Conceição, suas deliciosas comidinhas. Depois de oferecer ao leitor um
domínio claro da circunstância histórica brasileira, da situação do Prof. Afonso
Ricardo realiza o seu traço de mestre: Flaubert em Madame Bovary ? Machado de
Assis em A Cartomante ? Chordelos de Laclos em Ligações Perigosas ?
Em cena que remete ao cotidiano banal, numa ida
ao Banco Afonso resolve os seus arquetípicos problemas com o sogro / rival /
coronel no modelo Brasil/64. Promove o sogro a assassino e não poupa ironia – o
sogro interroga o genro e diz :
- a sua amiguinha?
Terrorista?
Com alma de eterno professor Afonso leciona:
- Até quando vocês vão
levar estes jovens ao desespero à morte
?
A cena final realiza o grande objeto de trabalho do autor
que se revela na dedicatória, no título e não deixa qualquer dúvida ao leitor –
trabalho de análise da história
contemporânea brasileira.
O sonho premonitório do início da
narrativa se realiza. Afonso morre ouvindo Debussy, num barco em movimento, com
personagem desconhecido. Chordelos de Laclos na memorável cena final de seu
romance de cartas ? Flaubert em Madame
Bovary? Machado de Assis em a Cartomante?
Não. Ricardo Faria encerrando o seu romance em corte rápido de narrativa
moderna e mais: o tema da Morte em presença dominante. As meninas contemporâneas
não morrem tuberculosas. Morrem de susto,
de bala ou vício, como nos ensina o poeta Caetano Veloso
Em um belo e trágico desfecho: morre Haidée usando jeans e
camisa em quadrinhos. Morre Afonso realizando o sonho premonitório que abre a
narrativa.
O Professor em seus momentos de
recolhimento e silêncio ouvia Debussy.
Em algum cinema de bairro um pianista toca As time goes by.
Bem posso escutar.
Belíssimo texto/resenha.
ResponderExcluirPoesia em prosa.