quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O gesto que fazemos para proteger a cabeça




Dois homens caminham. Um chega à terra para matar saudades do mar; outro supera um carreiro íngreme com uma carga de azeitona. O primeiro vem vergado ao peso da vingança. O segundo ao da sobrevivência. Cruzam-se numa estrada, perdida, no Alentejo, junto à fronteira. De Espanha chegam os ecos dos fuzilamentos e os foragidos da Guerra Civil. Transacionam-se mercadorias, homens, mulheres e até bebês. 

No espaço de um dia, que medeia dois entardeceres, muitas mulheres de cabelos ensarilhados pelo vento hão-de-conspirar num velho depósito de água rachado; duas amigas separam-se e unem-se por causa de um homem que se dissolve na lama. Um rapaz alentejano voltado para as coisas da existência é por todos traído, mas não tem vocação para desforras, e perde o falcão, a sua máquina alada de matar... 

Duas comunidades antagônicas, que se hostilizam, guerreiam e dependem uma da outra: uma à míngua, entre vendavais e pó; outra próspera, em traficâncias várias, cercada por pântanos, protegida por um tirano local e pela polícia política, abriga todos os rejeitados pela sociedade, malteses, republicanos espanhóis, fugitivos, cuspidores de fogo, ciganos, artistas de circo, evadidas de conventos, bêbados e arruaceiros. As velhas acusações transformam-se, a guerra tem renovados motivos, a raiva escolhe outros métodos. O grito do corpo continua o mesmo, tal como o gesto que fazemos para proteger a cabeça.

(fonte: https://www.portaldaliteratura.com/livros.php?livro=9776)

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