domingo, 26 de fevereiro de 2017

O novo livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira e sua obra

 Por Regina Gadelha

Nesses difíceis tempos em que as democracias parecem estar ameaçadas, o novo livro de Moniz Bandeira (A Desordem Mundial. 1.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 644 p.) esclarece e nos permite compreender a dialética das relações geopolíticas entre os fatos econômicos, políticos e sociais que marcam os destinos dos países e populações, as relações internacionais que interferem em suas histórias, ações políticas e externas possíveis, responsáveis pela preservação da independência e liberdade dos povos.

Se o conjunto da obra deste grande autor não oferece todas as respostas (nenhuma obra o faz), suscita reflexões e esclarecimentos sobre o intrincado jogo geopolítico que permeia os interesses das relações de dominação existentes por detrás dos conflitos internacionais. O livro vem, pois, preencher um vazio, desvelando os espectros da dominação que ameaça as periferias do sistema.

Como os títulos de suas obras anteriores, A Desordem Mundial traz importante subtítulo ilustrativo da importância da obra: O espectro da total dominação: Guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanas. Embasado em ampla documentação acerca dos fatos contemporâneos apoiados em documentos oficiais, as 643 páginas do livro devem ser vistas como parte da trilogia constituída por dois outros trabalhos anteriormente já publicados – Formação do Império Americano (2005) e A Segunda Guerra Fria (2013), em que o autor traça uma visão panorâmica do ultra-imperialismo global das potências mundiais.

Sobretudo em A Segunda Guerra Fria, demonstra a penetração dos Estados Unidos nessa vasta região e que, desde os anos 1990, utilizam a OTAN para reabrir seus negócios do petróleo, primeiro no Iraque e, logo, no Afeganistão, de onde se expandiu para um permanente estado de guerra, e o terrorismo, por toda a vasta região eurasiana, do Oriente Médio à África do Norte.

De fato, Moniz Bandeira não só descreve como analisa com profundidade, ao longo desta trilogia, os atores estratégicos que dão as cartas no cenário mundial. Estamos, porém, longe de constatar nos países ocidentais a presença de uma ideologia una e totalizadora, necessária à chamada “dominação total”, de que nos fala o autor de a Desordem Mundial, pois sob os graves aspectos que determinam as guerras e conflitos existem poderosas coligações de forças, o que impedem vislumbrar um final para este longo conflito militar e político, ideologizado e impregnado de religiosidade, que se arrastam desde meados do século XX. Portanto, estamos muito longe da “Pax mundial”.

O autor de A Desordem Mundial dedica dez dos vinte e quatro capítulos de seu livro para analisar a crise e a debacle da Ucrânia, país dividido entre as forças centrífugas ocidentais e a Rússia, para analisar o ressurgimento da Rússia como novo importante player neste cenário geopolítico global. Por seu lado, o Ocidente (a Europa burguesa triunfante desde o século XIX) tem sua liga maior coordenada pelos interesses econômicos globais dos setores financeiros e empresariais mundializados, o que explica a relevância da enorme (e imoral) concentração de renda e os valores demonstrados no capítulo segundo. “Free World/Free Market versus Curtain Iron”, como salienta o autor, com o crescimento da desigualdade social em todo o globo.

Estes fatos fazem submergir o imaginário do ideário democrático, transformando os Estados Unidos em uma “democracia militar”, conforme já alertara o embaixador Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas, em carta de 02/12/1952, escrita desde Washington (p.53-4). De acordo com Moniz Bandeira, é esta a ideologia da hegemonia militar que dá liga ao povo americano, permitindo sua maior manipulação ideológica, sobretudo após os ataques e a destruição das famosas torres gêmeas de Nova York, em 11 de Setembro de 2001. Cenário que permitiu George Bush Filho iniciar as práticas de novo “fascismo branco de poder” ao transigir profundamente a Constituição americana através do decreto do USA Patriot Act e a levar ao extremo a aplicação do poder federal no monitoramento eletrônico dos cidadãos.

De fato, a aprovação do Military Commissions Act (MCA) ratificado pelo Senado, em 9/09/2006, completa o “espectro da dominação”, com a ab-rogação do direito ao habeas corpus de qualquer cidadão norte-americano detido como “combatente ilegal”, designação utilizada para os prisioneiros capturados na Guerra do Afeganistão que foram levados para o campo de concentração da base de Guantánamo (Cuba), impedidos de recorrer às Convenções de Genebra. O mesmo Decreto outorga, ainda, poder ao presidente americano para deter indefinitivamente qualquer cidadão americano ou estrangeiro nos Estados Unidos ou no exterior, que demonstre apoio a hostilidades antiamericanas. (p.76). Estes decretos instrumentalizam os atos militares e as práticas de torturas praticadas por militares e agentes da CIA em todos os países do mundo, desde a Guerra do Golfo (1990-1991) liderada pelo então Presidente George Bush, seu pai, em coligação com o Reino Unido.

A Guerra do Golfo, em 1991, contra Sadam Hussein, porém, apenas abriria a “Caixa de Pandora”, iniciando um conflito de dimensões ainda não precisas e que se estende até os dias atuais.  Este cenário de guerras se dá fora da Europa – os países do bloco da União Europeia vinculados à OTAN e que têm como epicentro a Alemanha, importante player no jogo de poder das nações, fator não explorado por Moniz.

Parte importante do livro é a interpretação do que chama de “ressurgimento da Rússia”, país que fora provisoriamente abatido e afastado do jogo geopolítico no início da década de 1990, com o desmoronamento da União Soviética e o desmembramento de seu bloco. Este fator fora agravado pela corrupta privatização dos bens do Estado durante a administração do presidente Boris Yeltsin. Governando a Rússia desde a renúncia de Yeltsin, em 1999, Vladimir Putin foi eleito sucessivamente Presidente, com breve interrupção apenas de 2008-2011. Atualmente encontra-se em seu terceiro mandato iniciado desde 2012, com término apenas em 2018.

Moniz Bandeira mostra como este ex-membro da KGB soube retirar o país da crise política e econômica em que se encontrava desde a década de noventa e novamente colocar a Rússia como importante player no cenário das nações mundiais. Neste jogo de poder, cada player importa. Também a China emerge, representado por mais de 1 bilhão e 400 milhões de chineses, ao entrar fortalecida na competição econômica, reestruturando todo o cenário mundial e contribuindo para a destruição de empregos, salários e capitais. Dentro deste vasto panorama, a África (exceto África do Sul) encontra-se excluída e nossa pequena América do Sul submersa em profunda crise, da qual grande responsabilidade se dá através do agravamento do contexto econômico e político brasileiro atual.

Como nos demais trabalhos do autor, a Desordem Mundial abrange um longo período de tempo. O autor começa a análise traçando um histórico do nazi fascismo em sua fase de expansão, influindo não só sobre os países da península ibérica (as longas ditaduras de Franco, Espanha, e de Salazar, Portugal) como nas Américas. Demonstra a força da transformação exemplar do fenômeno nazifascista na ideia da “mutazione dello stato”, ou seja, para a transformação de um Estado livre em um Estado tirano, em nome da liberdade, e sua influência sobre os big businessmen americanos contrários às políticas do New Deal de Franklin D. Roosevelt, e que perdura até os sombrios dias atuais (capítulos 5-7). Nos capítulos seguintes, a obra dá sequência às reflexões acerca dos conflitos na Ucrânia, Síria e Oriente Médio e denuncia a influência dos grandes trustes monopolistas em rede, manipulando e dominando governos e economias dos estados nacionais, desde o século XIX até os dias atuais. Trata-se do chamado “shadow-banking sector”, forma avançada dos “Corporate Caesars”, “industrial Caesars” e “comercial Caesars” do século XX, como os denomina o autor, ao mesmo tempo em que a corrupção se tornaria inevitavelmente “inerente à república presidencialista inspirada no modelo americano”, modificando os fundamentos das democracias dos estados modernos e seu objetivo. “Legalized corruption, o que significa que os ricos, bilionários, com maiores recursos, podiam subornar os políticos, e era o que geralmente faziam. […] as firmas de lobbying, que se concentram na K Street, em Nova York, sempre puderam afetar a legislação com dinheiro dado aos políticos e por isso os que possuem recursos financeiros têm maior impacto no sistema político do que aqueles que não o possuem” (p.57).

Como parte desta análise sobre o desvelamento das hodiernas democracias, constata que o sistema capitalista conduziu o mundo a uma gigantesca concentração de renda, cuja desigualdade atingiu, em 2013, “o nível mais elevado desde 1928: 1.645 homens e mulheres controlavam maciça parte do acervo financeiro global, um montante de US$ 6,5 trilhões. Desses 1.645 bilionários, afirma, 492 viviam nos Estados Unidos, cujo PIB era da ordem de US$ 16,72 trilhões (2013 est.), e controlavam mais de US$ 2 trilhões”. (p.55-6).

É que a desigualdade recrudesceu a partir dos anos 1980, passando para 6 a 1: “A partir de 1982 […] as famílias mais ricas, 1% da população [mundial] que em 1982 recebiam 10,8% de todos os rendimentos antes da incidência de impostos (pretax), e 90%, com 64,7%, passaram a receber 22,5%, em 2012, enquanto a participação das demais caiu de 90% para 49%”. (p.55). Em decorrência, as ações da “free enterprise santificada engendrou, inevitavelmente, a acumulação de riqueza e a desigualdade estrutural de poder, assim como o free Market, que os presidentes dos Estados Unidos tanto se empenharam em impor a outros países, mormente àqueles com níveis salariais mais baixos e ricos e matérias primas”. (p.55-6).
Denuncia o recrudescimento da segunda “guerra  fria” em que Estados Unidos e seus aliados – países liderados por um cartel controlado por apenas oito famílias[1], das quais quatro sitiadas nos Estados Unidos e que manipulam não só as políticas do FED e do FMI, como influenciam as atividades e operações da OTAN, da Special Operations Forces/Navy Seal Team 6 à CIA, incluindo os ataques de drones empregados nas guerras assimétricas sobre alvos civis e militares, no Afeganistão, na Líbia, no Iraque, na Somália, no Iêmen, Líbia, Síria. Estas ações, afirma Moniz Bandeira, transcenderam todos os níveis das operações políticas, táticas e estratégicas até então conhecidas, graças à rápida expansão da tecnologia, e provocaram o advento do extremismo islâmico, pois “a difusão do poder tornava muito mais duro o avanço da causa regional e governança global”, conforme reconheceu Strobe Talbott, ex-secretário de Estado Assistente de Bill Clinton. (p.146). O autor conclui que tão pouco o Presidente Barack Obama teve êxito no combate ao terrorismo, pois os ataques dos jihadistas recrudesceram no Iraque, Afeganistão, Paquistão, Nigéria. De mesmo, os atentados terroristas em todo o mundo. Portanto sob vários aspectos, afirma, a política exterior de Obama foi desastrosa: “Os bombardeios da OTAN, por ele autorizados, devastaram a Líbia, uma das mais ricas nações da África” e o país “precipitou-se no caos econômico e político” após a queda do regime de Muammar Gaddafi.

A exemplo da política desenvolvida no Afeganistão e Oriente Médio, o golpe político da Ucrânia também foi articulado pela secretária assistente de Estado americano, Victoria Nuland, e pelo embaixador ucraniano de Kiev, Geoffrey R. Pyatt, resultando em outro fiasco, pois o presidente Putin reincorporou a Crimeia, assegurando a importante base naval de Sebastopol, no mar Negro, à Rússia. Hoje, demonstra o autor, a Ucrânia é um país falido, com sua moeda enormemente desvalorizada perante o dólar desde 2014 e uma dívida externa superior a 94,4% do seu PIB (2015), com queda prevista pelo FMI para mais de 12%!
A intervenção na Síria também serviu para evidenciar, por sua vez, o enorme e avançado poderio militar da Rússia e para restabelecer o prestígio qualitativo deste país no game da geopolítica mundial. (p.488). A Turquia, por outros motivos, também volta a regredir em termos de democracia, tanto sob o aspecto cultural como social. Portanto, se agrava a crise em todo o Oriente Médio. O balanço desta era, conforme também detalhado em A Segunda Guerra Fria 1.ed. 2013), mostra o triunfo do ultra-imperialismo, tendo por base o cartel das potências industriais ademais do incomparável poderio militar e financeiro dos Estados Unidos e seus aliados europeus da OTAN. Por outro lado, a política do governo Obama deixa um rastro sangrento de milhões de mortos e de exilados sem pátria, igual ou maior do que o legado deixado por seus antecessores. Ao finalizar A Desordem Mundial relembra a frase do historiador e filósofo alemão Oswald Spengler (1880-1936), para quem “não há ideais, mas somente fatos, nem verdades, mas somente fatos, não há razão nem honestidade, nem equidade etc., mas somente fatos”. (p.513). E são os fatos que explicam a história.
* REGINA MARIA A. F. GADELHA é Professora Titular do Departamento de Economia-FEA-PUC/SP; Coordenadora do NACI – Núcleo de Análise de Conjuntura Internacional da PUC/SP; Vice Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política – PUC/SP; E-mail: rgadelha@pucsp.br. Publicado originalmente em Revista Pesquisa & Debate. São Paulo. Vol. 27. Número 2 (50). Dez 2016.

[1] Trata-se do cartel controlado pelo Bank of America, JPMorgan Chase, Citigroup e Wells Fargo, entrelaçados com as companhias de petróleo Exxon Mobil, Royal Dutch/Shell, British Petroleum e Chevron Texaco, em conjunto com Deutsche Bank, BNP, Barclays e outros colossos financeiros da Europa. Estes bancos e empresas são de comando de apenas oito famílias: Goldman Sachs; Rockefeller; Lehman e Kuhn Loeb, dos Estados Unidos; Rothschild, de Paris e Londres; Warburg, de Hamburgo; Lazard, de Paris; e Israel Moses Seif, de Roma. (Id. p.140).

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