quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Dois narradores, duas épocas, um livro poderoso e comovente



Uma narradora com 100 anos de idade, que mora em um asilo/hospício há pelo menos 70 anos. E resolve escrever secretamente sobre sua vida e sobre o que levou a esse confinamento. Apesar de tão idosa, ela é extremamente lúcida, inteligente, saudável, do tipo que não precisa nem de óculos para ler. Sua narrativa é suave, filosófica, e, como em toda memória que se preze — ainda mais de quem viveu muitas histórias –, às vezes se perde em meandros e devaneios, embora logo recupere o fio da meada.
Esta é Roseanne e passamos as 350 páginas ansiosos para conhecê-la melhor.

O segundo narrador da história é o doutor Grene, meia-idade, médico do asilo onde vive Roseanne. Ele tem a mesma necessidade de saber um pouco mais sobre a história de sua paciente, movido por uma curiosidade que, no começo, até custamos a entender, mas que aos poucos vai fazendo sentido. Ele também se perde em devaneios durante seus relatos, mesclando o que descobriu de Roseanne com seu dia a dia em casa, onde vive com a mulher, num estado de casamento-divorciado.

Mais do que isso eu não gostaria de contar, porque o mais instigante deste livro é justamente o suspense em torno da história de Roseanne, tão maravilhosamente mantido por essa estrutura de narrativa em dupla e pelo jeito que ela tem de contar as coisas de forma sempre parcelada, como quem lembra e logo se esquece, e vai lembrar de continuar o “causo” apenas dias depois.

Além de serem dois narradores muito diferentes entre si, o que leva a história a mudar de enfoque a todo momento, são também dois tempos muito distantes que se entrelaçam com frequência: o passado remotíssimo em que Roseanne viveu sua juventude (e a parte mais emocionante do livro, para mim, foi da infância dela e do carinho que tinha pelo pai) e o presente que a gente fica querendo entender, intrigados. Pra melhorar tudo, as duas versões da mesma histórias às vezes se contradizem, e ficamos em dúvida sobre no que acreditar, em quem acreditar. No fim, fiz minha escolha.

O autor deste livro, Sebastian Barry, teve que ter grande habilidade para construir essa história de múltiplos tempos e narradores e ainda assim manter seus leitores sempre em linha, sem se perderem. E olha que eu li este livro de forma bastante entrecortada, às vezes passando vários dias sem pegá-lo, mas, assim que retomava, sabia exatamente o que tinha se passado até então. Isso é coisa que só bons escritores conseguem fazer, não é?

Enfim, trata-se de um livro de texto e conteúdo excepcionais. Mas a história é daquelas que dão grande tristeza — e raiva — em vários momentos, pelas injustiças e pelas situações vividas por Roseanne. De apertar o coração. Ainda assim, há também cenas bonitas, de elevar o espírito. E frases que, mesmo soltas, me pareceram tão boas que eu sempre relia depois do ponto final. Como esta passagem, colhida por mim agora, com o livro já concluído, totalmente ao acaso:

“Uma pessoa sem anedotas a alimentar durante sua vida, anedotas que sobrevivem à pessoa, está mais predisposta a se perder completamente, não apenas para a história mas também para a família que viverá depois dela. É claro que esse é o destino da maior parte das almas, reduzir vidas inteiras — não importa quão vívidas e maravilhosas — a nomes tristemente escritos em árvores genealógicas murchas, com datas e pontos de interrogação pendurados nos galhos.
A felicidade de meu pai não apenas o redimiu, mas também o levou às histórias e o manteve ainda vivo em mim, como uma segunda alma, mais paciente e mais agradável dentro de minha pobre alma.
Talvez sua alegria curiosamente não tivesse qualquer motivo. Mas não pode um homem fazer de si mesmo o mais feliz possível nesse estranhos e longos alcances da vida? Acho isso legítimo. No fim das contas, o mundo é de fato belo e, ainda que fôssemos outra criatura que não homens, seríamos, ainda assim, felizes conosco.”

Ou este trechinho:

“Um homem que pode fazer-se feliz diante dos desastres vindouros que o assaltarão, como em geral fazem os desastres, sem benevolência ou generosidade, é um verdadeiro herói.”

Ou esta imagem poderosa:

“Sentar-me aqui para escrever isto, minhas mãos tão velhas quanto as de Matusalém. Veja estas mãos. Não, não, você não pode. Mas a pele é fina como — você já viu as conchas de um peixe-cachimbo? Elas estão espalhadas pela costa da ponta Rosses. Bem, há uma película transparente que cobre essas conchas, como um verniz quase seco. É uma coisa estranha. Assim é minha pele hoje. Imagino que eu possa contar meus ossos. A verdade é que minhas mãos parecem ter sido enterradas por um tempo e depois desenterradas. Elas assustariam você. Há quinze anos não olho no espelho.”

Este último trecho fala outras duas coisas importantes sobre o livro, que eu tinha esquecido de mencionar: que Roseanne escreve conversando conosco, o que eleva ainda mais o grau de intimidade de todas aquelas memórias que ela compartilha. E que ela é mestra em fazer comparações, que criam imagens muito interessantes na nossa cabeça, o tempo todo. Para mim, como já escrevi aqui no blog, saber fazer boas comparações é uma verdadeira arte.

(fonte: https://kikacastro.com.br/2017/11/30/resenha-escritos-secretos/#more-14749)

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