quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros, de Eduardo Frieiro

A Comida dos Mineiros

*Antônio de Paiva Moura.

Análise do livro de Eduardo Frieiro intitulado: Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros: UFMG, 1966. 294 p.



O objetivo do estudo da composição e da edição desta obra é o de verificar todos
os limites da epistemologia, com seus paradigmas, estruturas e a história da sociedade
que a envolve. Nisso o autor, holisticamente trouxe à baila diversos comportamentos e
hábitos relacionados com a formação histórica de Minas Gerais e sua culinária tradicional.

O autor começa abordando o caráter artístico da culinária, considerando que seu
objeto é o de tocar nos diversos sentidos, como visual, tátil, palatal, odorífico e o efeito
químico que altera o humor e o prazer de reunir-se em torno da mesa. Nesse ponto ele
apresenta uma discussão entre Freud e Claparède. Freud diz que o sexo é a fonte
primordial da atividade psíquica. O sugar o peito da mãe é, para ele, uma manifestação
erótica da criança. Claparède não concorda com essa premissa, pois, alimentação é
primordial. Alimentar e praticar sexo são duas atividades vitais, mas a alimentação é a
que se desenvolve primeiro.

A diferença entre a forma de alimentar dos animais e dos humanos é que estes, desde os tempos das cavernas até os tempos atuais vêm aprimorando na produção, preparo dos alimentos e nas formas coletivas de comer. A palavra etiqueta vem de ética.
Foi criada para que nos banquetes uns não causassem aborrecimento ou constrangimento aos outros. Vale dizer: para que os convivas não se comportassem como os animais selvagens ao estraçalhar uma presa. O saber comer bem é determinante na arte de fazer bem os alimentos, o que resulta na alta culinária. Não se prepara um prato sofisticado para quem não sabe apreciá-lo. A gastronomia reúne o trabalho do cozinheiro ao gosto de quem vai se sentar à mesa. Para Frieiro, duas sociedades se
destacam no comer bem e na sofisticação de suas culinárias: A francesa e a chinesa.

Para aprofundar no assunto da gastronomia, Frieiro recorre a alguns nutricionistas profissionais que opinaram sobre a propriedade dos alimentos. Para estes, no mundo inteiro, a culinária tradicional não leva em conta os males e os benefícios dos alimentos no organismo humano. Além disso, ele busca e transmite conhecimento científico sobre as propriedades dos alimentos, mas cada povo come o que a terra lhe oferece, seguindo somente o que a sabedoria popular lhe determina. “O rebanho conhece melhor que o pastor a erva que lhe convém”.

Para responder a uma questão muito embaraçosa, formulada por Tristão de Ataíde, Frieiro investiga, antes de tudo, se existe o mineiro ou a mineiridade. Se ele realmente tem uma cultura que o distingue dos demais brasileiros. Pode-se dizer que de Norte a Sul, Leste e Oeste do estado, o tipo mineiro e seus hábitos alimentares guardam mais diferenças que semelhanças. Os viajantes estrangeiros são de opinião de que os mineiros alimentavam-se muito mal. A comida, no dia a dia, não variava, mas a
presença de uma visita fazia alteração substancial no cardápio. Nos dias de festas nas vilas e cidades também havia alteração nos tipos de alimentação. A qualidade, a qualidade e variedade de alimentos na mesa eram muito diferentes de acordo com a classe social das famílias. Nesse ponto tem-se que levar em conta que em Minas Gerais, no Brasil e no Mundo, existem focos de fome. A fome e a má alimentação não derivam somente da pobreza, mas em boa parte, da falta de conhecimento, má educação e de solos pobres em função secas.

No período colonial houve muita escassez de alimentos. Os primeiros habitantes
tiveram longos períodos de falta de alimentos e mortes por fome. Em conseqüência
disso, apelaram por alimentos exóticos como bicho de taquara, larva branca encontrada
em bambual, formigas, tanajuras, lagartos. Além disso, caça, pesca e animais
domésticos, especialmente, galinha e porco. Pouco a pouco houve aumento no consumo
de mandioca, farinha e polvilho dela extraídos. Mesmo no auge da opulência do ouro e
do diamante, a mesa do mineiro não foi farta. Os alimentos produzidos na região eram
muito caro e sobre eles havia uma brutal tributação. Daí ser a alimentação dos escravos
e doas famílias, pobres, de pouca variação e de baixo valor nutritivo.
A partir do século XIX, com a abertura dos portos do Brasil e a Proclamação da
Independência, com a mudança nas técnicas de extração mineral; expansão da
agricultura e da pecuária e das primeiras fábricas de tecidos e de ferro há uma
substancial melhora na alimentação dos mineiros. Mesmo assim, os viajantes
estrangeiros foram quase unânimes em observar que havia um enorme contraste entre as
riquezas naturais e a pobreza humana. Havia um grande abismo entre ricos e pobres.
Nas famílias ricas, à mesa se sentava o dono da casa e o eventual visitante. Mulher e
filhos comiam na cozinha, sentados em bancos e não usavam talheres. Comiam com as
mãos.

O memorialista José Vieira Couto, citado por Frieiro, mostra um quadro sombrio
de Minas Gerais, após o esgotamento das jazidas superficiais de ouro e pedras
preciosas. Povoados e vilas abandonados pelos moradores. Mas, para ele, a razão de tal
empobrecimento foram os excessivos tributos, confiscos e remessa de valores à
metrópole. Apesar do atraso tecnológico das práticas agrícolas havia, nos pomares das
vilas, abundância de frutas; fabricação caseira de queijo e manteiga.

A partir de 1830 começa a produção de café pra consumo e em seguida para
exportação. Até então era muito usado o chá de congonha, planta nativa em toda a
Cordilheira do Espinhaço. Em 1825 o chá da Índia já era cultivado no Jardim Botânico
de Ouro Preto. Por esse tempo, na refeição diurna dos mineiros, segundo João Emanuel
Pohl, era freqüente a presença iguarias derivadas do milho e da mandioca. Angu, bolo,
broa, pão e farinha de milho. Da mandioca seu uso cozido, farinha e polvilho muito
empregado nas diversas quitandas.

O que causou muito espanto aos estrangeiros foram os modos exóticos de os
mineiros se servirem: comer com os dedos; diversas pessoas usavam a mesma colher
para tirar farinha ou farofa, levá-la à boca e voltar com a mesma para o monte ou
vasilha.

Nas primeiras décadas do século XIX havia muita confusão na sociedade, tanto
do ponto de vista econômico quanto social e cultural. Ter riqueza ou ostentar luxo podia
chamar a atenção dos reinóis que podiam inventar situações lituosas para, em
conseqüência, confiscar bens dos proprietários. Mas entre os fazendeiros abastados
havia muita civilidade e hospitalidade. Em 1817 John Luccock hospedou-se em uma
fazenda em São João Del Rei e ficou surpreendido com a variedade de comidas e
bebidas, como cerveja inglesa e vinhos do Porto servidos em taças de cristal. Os
talheres eram de prata e os pratos de porcelana de Macau. Por outro lado, no entorno das
fazendas e nos povoados havia muita gente pobre e doente. Grande quantidade de
pessoas com papo no pescoço, bócio endêmico, que aumenta a glândula da tireóide. A
freqüência dessa doença era em face da ausência de cálcio e de iodo contido no sal. As
famílias pobres não podiam adquirir sal por causa de seu alto preço. Na dieta dos mais
pobres era comum o uso das hortaliças, verduras e legumes, além de angu e feijão.
No final do século XIX os pousos ou ranchos de tropeiros e viajantes passaram a
denominar-se hotel. Nota-se e a influência da culinária italiana nos cardápios. Para
mostrar como era a comida dos escravos nas fazendas e nas jazidas minerais, Freieiro
lançou mão de um interessante parâmetro: Verificou que a alimentação na Mina de
Morro Velho, explorada por ingleses, era bem superior às demais. Nas fazendas, os cães
e as bestas de carga tinham melhor alimentação que os escravos, pois estas não
passavam de angu mal cozido e feijão. Raramente variava com banana, laranja e farinha
de mandioca. A manga podia ser usada sem restrição. Como havia restrição ao uso do
leite, os fazendeiros inventaram que manga com leite fazia mal. Essas limitações
alimentares causaram um curto tempo de vida entre os escravos. Quando adoeciam era
mais econômico deixá-los morrer que dar-lhe tratamento medico.

Antes de Frieiro, diversos romancistas mineiros trataram com propriedade a
questão da alimentação dos escravos: Bernardo Guimarães, em “Uma história de
Quilombolas”; Avelino Fósculo, em “O Mestiço”; Godofredo Rangel, em “Vida
Ociosa”. Rangel recolheu uma quadra popular na memória coletiva que mostra que a
situação alimentar dos negros não havia mudado mesmo com o fim da legalidade da
escravidão. Comida de negro brabo / Quatro laranjas num gaio / Uma cuia de farinha /
Cinco ponta de vergaio. (Vergalho é chicote feito com o órgão genital do boi, depois de
seco).

Zemela Mafalda, autora de “O abastecimento na capitania de Minas Gerais”, diz
que o fato de angu de fubá não ser temperado com sal é resultado da tradição, mas isso
prevaleceu através do tempo, porque os demais alimentos, como couve refogada,
torresmo e carne, o completam. Ao mesmo tempo em que pesava a tradição, as
cozinheiras de Minas Gerais, em seu relativo isolamento e na ausência de outros
mantimentos, tiveram que criar variadas formas de pratos e quitandas.
As criações ou novidades apareciam nas festas de passagem como Natal, Ano
Bom, São João, Bodas de Casamento. José Rangel, no livro “Como o tempo passa”
(1940) descreve a recepção que teve em casa de um morador de Ouro Preto em 1882. À
noite foi servido ao visitante um chá com uma grande variedade de quitandas como
biscoito de polvilho frito e assado, broa de amendoim, sequilhos e pamonhas, broa de
fubá e rosca, todas feitas em casa.

Com a mudança da capital de Ouro Preto para Belo Horizonte (1897) houve
considerável alteração social em Minas Gerais. Nove anos antes havia sido abolida a
escravidão. Tem-se os negros como trabalhadores assalariados. Frieiro tem uma fonte
segura que registrou minúcias do cotidiano na nova capital. Trata-se do arquiteto
português, Alfredo Camarate, que fazia parte da Comissão Construtora da cidade e que
registrou em crônicas os modos de vida, como freqüência a bailes, cavalhadas, os
velórios e os tipos de bebidas e alimentos que neles consumiam; as comidas do dia a
dia; as danças mais freqüentes. A cidade despertava curiosidade e por isso recebia
muitos viajantes ilustres que relatavam suas impressões. Ao contrário de Alfredo
Camarate, o poeta Olavo Bilac teve boa impressão de Belo Horizonte, não deixando de
notar a grande quantidade de papudos transitando pela cidade. Recolheu entre os
moradores da cidade um quadrinha popular alusiva aos papudos: O papo pra ser bonito
/ tem que ser de três caroços / um em cima outro em baixo / Outro no meio do pescoço.
Com o andar do tempo, a cidade começou a receber novos moradores, sendo na
maioria de mineiros vindos de outras regiões do Estado e imigrantes italianos, franceses
e ingleses. Os ingleses eram ligados à Mineração Morro Velho e às construções de
ferrovias. Nos banquetes, nas confeitarias, hotéis e restaurantes aparecem as influências
estrangeiras. Dos italianos, as macarronadas, talharins, ravióli, nhoques, pizza, pasteis e
empadas. Na mesa de influência francesa eram mais freqüentes as sopas, peixes e carnes
assadas. Na cozinha inglesa, o peixe com batata frita, salsicha com purê de batata, rost
beef. Embora a batatinha seja originada da América do Sul, os ingleses foram os que
difundiram seu uso, tanto assim que ela passou a ser chamada de “batata inglesa”. A
cozinha mineira, presente e infalível nos banquetes, conservava, nos cardápios, a
nomenclatura tradicional em português. As demais variedades eram grafadas em francês
e em latim.

Como Belo Horizonte, na primeira metade do século XX teve uma população
economicamente ativa baseada na prestação de serviços, como comércio, bancos,
ensino, profissões liberais e funcionalismo público, o nível de vida era considerado alto,
o que garantia a existência de um bom mercado de bens alimentícios. Não era difícil
encontrar os produtos da terra, começando com os laticínios; derivados da carne suína,
como lingüiça, tocinho, chouriço, pé e orelha e porco; doces de frutas como a
tradicional goiabada cascão, marmelada, doce de figo e de limão; hortaliças e legumes;
farinha de mandioca, polvilho; fubá e farinha de milho.

Por outro lado, a cidade comportava favelas nas mesmas proporções e
características das do Rio de Janeiro. Admirável a qualidade e abrangência do estudo
que Frieiro faz das condições mentais e sociais sobre as favelas. Tão atualizado, em seu
tempo, que faz citações do livro “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus,
lançado em 1960. Em um período do texto desse livro está escrito: Como é horrível um
filho comer e perguntar: tem mais? Já viram alguma vez como come um trabalhador
com salário mínimo? Para Frieiro o pior era que 75% dos trabalhadores de Belo
Horizonte recebiam menos que o salário mínimo. Não havia um cardápio da classe
operária e das gentes faveladas. Comiam o que tivesse disponível no momento. Havia
os que pediam de porta em porta o pão velho de cada dia; outros que reviravam latas de
lixo em busca de migalhas.

O livro “Feijão, angu e couve” percorre toda a extensão da história de Minas
Gerais mostrando os dois lados da sociedade: Possuidores e não possuidores. A enorme
diferença entre ricos e pobres. Não somente a descrição das diferenças sociais, mas a
posição crítica da realidade histórica. Frieiro impressiona pelo alto grau de erudição e
atualização com a forma de narrar história. Ao contrário de muitos historiadores de seu
tempo, foi na contramão da historiografia positivista, para a qual somente os heróis, os
mandatários consagrados figuravam com personalidades históricas. Para eles não havia
historiografia regional e, muito menos, suas comidas típicas. Frieiro mostrou-se
atualizado com a Escola dos Anales. Segundo Marc Bloch tudo que o ser humano toca é
historiografia. Seu parceiro Lucien Febvre completa que a escrita da história deve
levantar questões a serem resolvidas. E foi essa a inquietação do Frieiro.
Como Eduardo Frieiro faleceu em 1982, não viu o alcance e o prestígio da
culinária mineira em âmbito nacional e internacional. Mas, certamente, saberia
compreender que os modos e meios alimentares dos mineiros foram preservados pela
tradição. As tecnologias modernas permitiram aperfeiçoamentos e adaptações desta às
condições de objetos de mercado.

*A P Moura é mestre em história pela PUC-RS e professor aposentado da UEMG.

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