quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Nosso sotaque caipira, nossa cultura refugada, nas notas de um magistrado da roça

REGINA M. A. MACHADO*
O nome do escritor que vai nos interessar é Valdomiro. Mais démodé não existe. Atualmente, um ilustre desconhecido, sim, mas seu prestígio já foi grande, na época em que seus contos eram publicados nos grandes jornais nacionais no final do séc. XIX e nos primeiros vinte anos do séc. XX, anos do Pré-Modernismo. Jamais se preocupou em reunir em livro esses contos, até que amigos que o admiravam o fizeram por ele.[1]
Lembrei desse escritor, conversando com uma amiga – e amiga poeta, dessas que conhecem as manhas e mistérios das palavras – de quem ouvi a pergunta, em tom de desafio:
– O que é cultura caipira?
Respondi, para resumir:
– É a cultura regional do Sudeste.
– Mas por que caipira? – e o tom era meio de revolta, de defesa contra alguma coisa ofensiva ou desagradável.
Ora, esse ponto de vista ignora o sentido conotativo do termo “caipira”, carregado de associações com coisas que nos precedem e nos ultrapassam. Sem essa carga histórica e emocional, o termo “caipira” fica atrelado a uma certa noção pejorativa, pelo menos para uma classe média culta e citadina que inclui o meio acadêmico em geral.
Mas é do meio acadêmico que surgem grandes clássicos da sociologia brasileira sobre a cultura caipira que, em belos textos de forma elaborada, transmitem uma grande paixão por essa velha cultura desde sempre marginalizada no Sudeste enriquecido pelo café. A forma de exploração da terra, os grandes latifúndios de monocultura voltada para a exportação, cada vez maiores e mais ricos, deixavam pequenas frinchas onde subsiste (ou subsistia?) o que Antonio Cândido, em Os parceiros do Rio Bonito, conceituou como “bairros caipiras”. [2]
Estes bairros e estes homens representam uma forma de sobrevivência de maneiras de viver que remontam às primeiras ocupações da região. Centradas no planalto paulista, ao se espalhar, elas inventam um território nacional com suas expedições de caça ao índio. Com este índio e sobretudo com esta índia, aprende e mistura-se o português, para formar o bandeirante, capaz de andar descalço e ir da bacia do Paraná à bacia do Amazonas a pé, plantando milho e mandioca pelo caminho. Esse mestiço étnico e cultural torna-se capaz de organizar sua sobrevivência e um tipo de organização social com uma competência e uma crueldade até hoje dignas de assombro. No século XVIII, com a descoberta do ouro, é por São Paulo que passa o Caminho Velho, que parte de Parati para as Minas Gerais. Nessa corrida do ouro, os paulistas desertam sua província que empobrece, até que voltam rechaçados pelos emboabas que passam a controlar as minas de ouro e diamantes até o esgotamento de todos os filões. A província vegeta pobremente até a chegada do café, na segunda metade do século XIX. A população nativa recebe várias denominações, algumas partilhadas com outras regiões, como cabocla, por exemplo.
O caboclo, todavia, para Valdomiro, não é uma designação étnica, mas simplesmente o homem do sertão, do campo, da roca. Diz ele: Caboclo, na linguagem dos brasileiros, não quer dizer filho de bugre, senão qualquer mixuango, tapiocano, mucufo ou tabaréu.[3] Apesar de poderem se substituir uns aos outros num eixo de sinonímias, caboclo et caipiracertamente não tem a mesma conotação. Se todo o mundo se designa freqüentemente como caboclo (Valdomiro, Affonso Arinos, etc.), só Lobato, mais tarde, após o sucesso do seu Jeca Tatu, vai reivindicar a denominação de caipira ou designar a si próprio como Jeca. Essa dificuldade se deve talvez ao fato que o termo caboclo remete a um tipo físico, cultural, ligado a uma paisagem, a um modo de vida, enquanto caipira faz pensar numa figura à margem, numa terra onde a forma de posse, a plantation, o latifúndio, a fazenda de modo geral, não lhe dá direito senão a um trabalho alienante, já que despossuído. A palavra caipira, e a própria designação da cultura regional correspondente, talvez só tenham adquirido direito de menção nos textos literários e acadêmicos com a citada tese de Antonio Cândido, Os parceiros do Rio Bonito.
Para Enid Yatsuda as características pejorativas geralmente atribuídas ao caipira e que transparecem no desprezo com que o citadino se refere ao homem do campo, são marcas da oposição entre cidade e campo, característica fundamental e indispensável para se compreender a sociedade brasileira.
Caipira, matuto, tabaréu, mandioca, capixaba e outros congêneres são expressões de menospreço, de debique, atiradas pela gente das povoações, cidades, vilas, aldeias e até arraiais contra os habitantes do campo, do mato, da roça. São a expressão de um antagonismo secular.[4]
A realidade regional, entretanto, vai exercer seu poder de questionamento sobre dois grandes escritores. Ambos nascidos e criados no interior de São Paulo no final do século XIX, ambos acadêmicos de direito – como bons herdeiros de avós fazendeiros – e ambos com um começo de carreira jurídica no interior do estado. Lobato no vale do Paraíba já decadente, Valdomiro mais para o Oeste, certamente numa região ainda relativamente preservada tanto no que se refere à natureza quanto à paisagem humana.
Lobato, de fato um precursor do modernismo, está preocupado em acabar com a herança do indianismo romântico, o “caboclismo”. Esse projeto está claramente exposto no prefácio a Urupês, mas é também uma velha raiva do escritor-fazendeiro contra o colono, o caipira a quem ele atribui todos os males que afligiram suas plantações e criações durante suas tentativas de ser fazendeiro. Tudo isso é recorrente nas deliciosas cartas a Godofredo Rangel, que compõem os 40 anos de correspondência da Barca de Gleyre. Criando o Jeca Tatu, genial caricatura cruel e de uma lucidez parcial e injusta, ele não vai acabar com o caboclismo, mas vai fixar no nosso imaginário a figura do caipira como imagem negativa e desvalorizada.
Urupês é a primeira aventura editorial desse verdadeiro inventor da edição brasileira moderna que foi Monteiro Lobato. Mas nos seus planos iniciais, a previsão era de editar, como primeiro lançamento, sob o titulo Os caboclos, os contos de Valdomiro Silveira até então esparsos nos jornais, e que ele editará em seguida.
Este escritor e magistrado, nascido no final do séc. XIX no interior do Estado de São Paulo, estudou e ocupou importantes postos políticos e administrativos na capital, mas foi nas cidades do interior que ele viveu a maior parte de sua vida e é aos habitantes dos bairros caipiras que ele dá a palavra em sua obra literária.
Depois do curso de direito na capital, volta como promotor para o interior do Estado, onde passa alguns anos num trabalho escrupuloso que lhe vale perseguições por parte dos poderosos fazendeiros da região. Durante as audiências, ele transcreve tanto as notas do processo quanto a maneira de falar das testemunhas. Estuda ornitologia e botânica e participa ativamente da vida social dos bairros.
Frequenta os “assustados”, as “funções” e os “pagodes” para os quais os caipiras o convidam. Toma parte em caçadas e pescarias, mais para ter o gosto de ouvir e aprender. Compõe versos para recortado ou modas de fandango. É compadre de meio mundo e vive utilmente a sua vida em pleno sertão. Sente-se milionário porque já possui montaria caprichosamente arreada e um lampião belga para a leitura à noite.[5]
Nascido em 1873, publica seu primeiro conto regional em 1891, no Diário Popular de São Paulo, o que faz dele um pioneiro do regionalismo, precedência que disputa com Affonso Arinos. Valdomiro conheceu a sociedade ou a cultura caipira num período em que ela apresentava ainda grande pujança, num período em que sua desorganização ainda não era muito acentuada pelos elementos perturbadores decorrentes da civilização urbana-capitalista-tecnológica, como a viu e como a viveu Monteiro Lobato, ele mesmo profundamente empenhado em promover a transformação da sociedade para o rumo da industrialização e da tecnologia.
É com a industrialização e o crescimento de S.Paulo no inicio do séc. XX que a cultura caipira começa a ser vista como ridícula, cruelmente degradada na sua tentativa de se adaptar aos padrões culturais da civilização urbana, e que o regionalismo começa a produzir obras caricaturais, produto da visão que a sociedade urbana tem da vida no campo: um objeto exótico.
Para Valdomiro, não é o caso. Esse meio a que ele próprio declara pertencer – Sou caboclo legitimo, diz ele – parece constituir também seu público de eleição. E diz ainda: É nesse falar caboclo, essa fala bem brasileira, que gosto de escrever para meu povo, para meus caboclos.
O leitor designado, portanto, é o homem do campo. Será delírio, num país com tão alto índice de analfabetismo sobretudo na época? Ou será que isso explica o fato de ter preferido ficar só nos jornais, sempre mais acessíveis do que um livro? Será ainda que a forma de convivência nos bairros caipiras compreendia a leitura em voz alta, fenômeno comum desde a Europa rural e que aumenta consideravelmente o número de leitores, transformados em ouvintes? Fica a pergunta.
Essa profissão de fé empenha uma coerência de atitudes na obra de Valdomiro. Além da construção poética que subtende seus relatos simples, versados numa linguagem aparentemente mimética, nada distingue o autor culto de seus personagens. Seu estilo permanece próximo do mundo que ele quer recriar e o opõe assim a outros regionalistas cuja erudição transparece obrigatoriamente para distinguir a palavra do autor da de suas criaturas.
Arinos temperava a transcrição da linguagem mineira com um sensível comprazimento de prosa clássica; já em Valdomiro Silveira predomina o gosto da fala regional em si mesma: sintaxe, modismos, léxico, fonética, quase tudo acha-se colado à vivência dos homens e das coisas do interior.[6]
Isso poderia explicar o esquecimento que desde então recobriu a obra desse escritor: ele não interpela os seus pares do mundo literário com um discurso sobre o mundo caipira, mas ele se situa dentro desse mundo e é a partir dessa paisagem humana e física – que claramente o encanta – que ele nos fala, mas também ao qual ele envia prioritariamente o seu discurso.
Ora, com essa atitude Valdomiro se opõe tanto por sua obra como por seus propósitos ao citadino bem pensante, sinceramente aflito com os problemas de seu país, mas que marca sua superioridade cultural sobre o que fica caracterizado como uma precariedade de meios de expressão de seus personagens. Ainda não era chegada a hora de Guimarães Rosa, que o reconhece como predecessor. Além disso, os contos reunidos em Os caboclos apresentam um certo anacronismo, pois, escritos entre 1898 e 1906, são publicados por Lobato em 1920, às vésperas da explosão modernista. A oposição entre o “sentimento de localidade”do caipira vai se opor então às aspirações universalistas do modernismo, até pela proximidade geográfica do caipira, que o problematiza e impede sua mitificação. Aos modernistas Valdomiro se opõe também pela escolha de um cenário e de um mundo sonoro e visual.
Como se pode constatar, o tempo da roça separa-se cada vez mais do da cidade. Wilson Martins lembra a importância dessa mudança de ritmo da vida no inicio da era industrial.
… o sinal mais evidente da «vida moderna» era a velocidade, manifestação exterior de um fato muito mais profundo e essencial que foi a penetração da consciência do Tempo no espírito do homem.[7]

* REGINA M. A. MACHADO é pesquisadora associada ao CREPAL; autora de tese sobre a ficção das fazendas de café escravagistas no vale do Paraíba disponível em https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01086733
[1] Trechos de um pré-doutorado defendido na Sorbonne Nouvelle-Paris3, em 2000, em que sustento a tese de que o uso dos elementos da natureza na obra de Valdomiro Silveira obedece a um projeto consciente de construção poética sistemática.
[2] A. Candido, Os parceiros do Rio Bonito – Estudo sobre o caipira paulista e a transformação do seu meio de vida, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Ed., 1964.
[3] Entrevista a Silveira Peixoto, Apud Carmen Lydia de Souza Dias, Paixão de Raiz (Valdomiro Silveira e o Regionalismo), São Paulo, Editora Ática, 1984, p.254.
[4] Enid Yatsuda, «O caipira e os outros», Alfredo Bosi, Org., Cultura brasileira, – temas e situações, Série Fundamentos, São Paulo, Ed. Ática, 1987, p.103.
[5] « Notas biográficas » de Júnia Silveira Gonçalves en préface à Valdomiro Silveira, Nas serras e nas furnas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975; p.xi.
[6] Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira, São Paulo, Cultrix, 1977, p.237.
[7] Wilson Martins, A literatura brasileira – Vol.VI – O Modernismo (1916-1945), São Paulo, Cultrix, 1973, p. 22.

(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2019/01/30/nosso-sotaque-caipira-nossa-cultura-refugada-nas-notas-de-um-magistrado-da-roca/)

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