O que é a dignidade? O que torna uma pessoa digna?
O personagem do livro "Vestígios do Dia",
do Nobel Kazuo Ishiguro, parece ter passado a vida inteira em busca da resposta
para essas perguntas. E, em última instância, em busca dessa dignidade. O
mordomo Stevens é também o narrador deste livro tão pungente, ao mesmo tempo
tão sóbrio.
Como é pungente e sóbrio? Como é frio e
emocionante? Como é pessoal e impessoal? Pois é isso mesmo: a narrativa de
Stevens, o mordomo por definição, é esse amontoado de paradoxos. Ele escreve,
sim, de um jeito absolutamente formal, impessoal, distante, oficial. Seu diário
de bordo tem uma linguagem refinada, como se nos fizesse enxergar um narrador
sempre de roupa social, postura ereta e tom de voz baixo e pausado. Mas,
debaixo da superfície, tem um vale de emoções, escondidas por uma definição
muito peculiar de dignidade.
Temos muito poucos personagens neste livro, sendo
os mais importantes o próprio Stevens, a governanta Miss Kenton e o aristocrata
inglês Lord Darlington, para quem Stevens dedicou sua vida de três décadas de
trabalhos. Boa parte do livro tem reflexões sobre o próprio trabalho de
mordomo, sobre sua servilidade, sobre a lealdade canina com que Stevens vê a
função. Ainda assim, tratando de um tema aparentemente tão morno, não sei como,
mas certamente com uma maestria narrativa difícil de encontrar, Ishiguro nos
prende do início ao fim. Dificilmente sentirei as emoções que senti ao ler, por
exemplo, o trecho entre as páginas 118 e 125 da minha edição. Um evento
político importante, talvez decisivo para os rumos da História do século XX,
acontecia na casa de Lord Darlington, ao mesmo tempo em que um acontecimento
pessoal também extremamente importante acontecia na vida de Stevens. Nessas
páginas, temos praticamente só diálogos seguidos, sem qualquer pausa, uma aspa
atrás da outra. Não sobra tempo nem para respirar: a gente vai absorvendo essas
conversas e sentindo, junto com Stevens, uma angústia reprimida.
Por fora, ele é uma pedra e, como narrador em
primeira pessoa do livro, ele quer manter essa camada visível. Mas o escritor
vai deixando as brechas para o leitor captar a verdadeira essência do
personagem. E é só no fim do livro, bem no fim mesmo, graças a mais um daqueles
maravilhosos diálogos, que vamos entender o título da obra. "Vestígios do
dia". Deixarei assim, para que vocês também tenham o prazer de sorver a
coisa toda com calma.
Quando terminei a leitura, havia ainda um pequeno
conto no final. Relutei a lê-lo. É bom também, mas é que eu estava gostando
tanto da companhia do Mr. Stevens, que fiquei triste em trocar assim, de forma
tão abrupta, de voz narrativa. Talvez o único defeito deste livro tenha sido
colocar este "brinde" junto. Fora isso, impecável. Como um mordomo
inglês.
Os Vestígios do Dia
Kazuo Ishiguro
Tradução de José Rubens Siqueira
Editora Companhia das Letras, 2016 (2a edição)
285 páginas
De R$ 32,90 a R$ 54,90
Kazuo Ishiguro
Tradução de José Rubens Siqueira
Editora Companhia das Letras, 2016 (2a edição)
285 páginas
De R$ 32,90 a R$ 54,90
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