Por Carlos Russo Jr.
Dante Alighieri foi político, poeta, estudioso da cosmologia e da ética de São Tomás de Aquino. Refugiado de Florença, viveu no exílio a maior parte de sua vida e lá criou sua obra prima, “A Divina Comédia”, o maior poema de todos os tempos!
Dante, para aventurar-se pelos caminhos que conduzem ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso, necessitava um guia. Escolheu Virgílio, poeta criador da “Eneida”, o poema que unira o mito grego ao Império Romano, mais de dez séculos antes do nascimento do poeta fundador do idioma italiano literário. Afinal, o Império Romano triunfante necessitava substituir seu “Rômulo e Remo”, amamentados por uma loba plebeia, por um mito fundador fugitivo da destruída Troia, na figura de Eneias, filho do rei Príamo.
E Dante nos traz à “Divina Comédia” o poeta Virgílio, representando a Razão e a Sabedoria Divina, por sua vez fora designado como seu guia pela angelical Beatriz, um amor platônico do poeta, sentada ao lado de Deus no Paraíso.
Aquele que nós julgamos ser um dos ápices do poema, seu Canto V, ocorre num dos primeiros círculos do Inferno. Dante se depara com um casal todo entrelaçado, que é açoitado pelos ventos, Francesca e Paolo de Rimini. E será este Canto que podemos considerar como fundador do Eterno Feminino!
Pelos idos de 1280, vivia Francesca, uma nobre de Ravena, afamada pela beleza, a inspiração de Dante Alighieri; era filha de Guido da Polenta, hospedeiro do poeta exilado. Guido era o governante da cidade, que estivera em guerra com a de Rimini. Por um acordo de paz, o pai concedera Francesca em casamento a Giovanni Malatesta, muito mais velho e de péssima aparência. Como ele soubesse que a filha não concordaria em casar-se, o enlace foi realizado por procuração, através de um irmão jovem do noivo, Paolo Malatesta. Acontece que os cunhados não tardaram em se apaixonar e, atraídos para uma cilada pelo marido enganado, foram ambos assassinados.
Até aí basta-nos a história, pois a Francesca de Dante é antes de qualquer coisa uma criação de artista, de gênio, a “primogênita, a primeira mulher viva e verdadeira surgida no horizonte poético dos tempos modernos”², personalidade poética de um ideal cabalmente levado a termo, com todos os conceitos prevalentes na poesia da época: amor, elegância, pudor, pureza e, principalmente, gentileza.
Ao adentrar nos domínios do Inferno, Dante leu no letreiro escuro:
“Por mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao padecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada…
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança.”
Com Dante, um homem vivo a visitar os mortos, ocorreu precisamente o oposto, pois criou uma Francesca que se tornou imortal, símbolo de o “eterno feminino que nos atrai para o alto”[1], primeira mulher a adquirir vida na literatura moderna!
Dante, que tecia versos por um amor puro localizado no Paraíso onde reinava sua Beatriz, uma criatura pouco mulher, mais para uma “angelleta bela e nuova”, encontrou o verdadeiro Amor, aqui no princípio do Inferno, em Francesca. E onde existe o Amor, rescinde-se a Vida.
E Francesca nada tem de divinal, ela é humana e terrestre, um ser frágil, apaixonado, capaz de assumir sua culpa e de culpar, com todas as faculdades feminis que geram emoções irresistíveis e para falar a Verdade, a Vida é isto.
Ela não tem qualidades vulgares como o ódio, o rancor, a inveja. Tampouco qualidades tidas como positivas, boas, caridosas, divinais. De seu íntimo exala exclusivamente Amor, Amor, Amor! E neste está sua ventura e sua desdita! Não busca desculpas pela cilada montada pelo marido que a levou à morte. Abraçada ao espectro do amante, Paolo, sua palavra é de uma brutal sinceridade: “Ele me amou, eu o amei, é tudo!” O Amor é para ela força a que não se pode resistir! Uma onipotência e fatalidade que se assenhora de toda a alma e a conduz ao incontrastável, ao inevitável!
A criação de Dante foi a primeira florescência da qual surgiram as personagens mais amadas da poesia moderna: seres delicados feitos para o amor, nos quais nada há que resista e reaja, flores para as quais o forte vento chega a ser mortal, como Sonia Marmieladovna (Dostoievski), Albertine (Proust), Helena (Machado de Assis), Ofélia e Julieta (Shakespeare) … Mulheres arremessadas num mundo que não compreendem e onde também não são compreendidas. A heroína de Dante abraçada a Paolo, é um casal tangido pelo vento de sua própria paixão, que se aproxima mais e mais do abismo que eles próprios cavaram e onde podem se precipitar. Mas não importa, isso eles o fazem despreocupadamente, desde que enlaçados, antes mesmo de terem sorvido a vida, a beleza e a juventude.
Paolo, que se mantém na derrota como indomável e rebelde, deixa-se conduzir pelo Inferno. Ele é a expressão muda de Francesca, o corpo que acompanha a voz. Francesca fala, Paolo chora.
Francesca é mulher e como tal, vencida, derrotada pela paixão, pois a poesia da mulher consiste em se deixar vencer e nesse movimento mantém sua alma imaculada, e “o não sei o que de macio, puro, e delicado, que é o eterno feminino, ser gentil e puro”. Em Dante, o feminino em sua debilidade e na desgraça da luta conserva intocadas as qualidades essenciais, arranca lágrimas do poeta, o viajante mortal e o derruba como se também morto fosse.
Francesca nada disfarça, nada oculta e confessa com doçura o seu amor. Não possui uma só queixa ou arrependimento, nem sequer busca atenuante ou revolta-se contra Deus. “Paolo me amou, porque eu era bela, eu o amei porque me comprazia ser amada e no prazer dele sentia o meu prazer.” E isto é confessar um amor, que pessoas vulgares não o fazem nem a si próprias.
E quando Paolo lhe beijou a boca toda tremente não era de medo que tremia, mas de paixão, paixão autêntica e verdadeira, desejo de posse e de volúpia.
Agora, unida a ele, o sentimento os purifica e dentro de uma aura de doçura e de ternura que sopra levemente de todos os lados, cria-se uma rara delicadeza de sentimentos e tal suavidade só nos alcança a languidez da mulher apaixonada.
“Ma se a conoscer la prima radice
Del nostro amor tu hai cotanto affeto”.
Através do afeto Francesca exprime o seu desejo e morrer para ela é somente perder-se a “bella pessoa” que tanto agradava ao homem amado!
Se o Amor para Paolo foi uma necessidade do coração apaixonado, para ela foi uma necessidade de mulher amada:
“Amor ch’a com gentille rato s’apprende…
Amor ch’a nullo amato amar perdona…
Amor condusse noi ad uma morte”.
Nestes três versos está todo o romance eterno do Amor tal qual se apresenta à mulher: Amor que o coração rapidamente prende a si, Amor que a amado algum dispensa, Amor que a somente juntos a morte pode carregar.
Pois aqueles dois estão “colados” e se amam por toda a Eternidade, não porque estejam danados no Inferno, mas precisamente porque foram condenados por Amor. Eles jamais poderiam estar num etéreo Paraíso, pois somente no Inferno o que é terrestre, dantesco, permanece imutável!
Pois os pecadores de Dante, habitantes do Inferno, conservam as mesmas paixões, impenitentes, embora condenados; carregam todas as suas qualidades e paixões, por isso Francesca amou, ama e amará e não afastará de seu coração esse Paolo.
“…Eterno… martir…sottera…oimé…ne aspeta! Paolo eterno fia Il nostro amoré.”
Eternal amor, eternidade de martírio, o pecado praticado (a traição ao marido ao qual fora forçada a se ligar) o poeta o lança à sombra. O pecado do sexo é o ponto alto da tragédia, mas é um pecado que está entranhado na própria alma dos amantes! E por coexistirem nas almas amor, pecado e culpa, eles não podem se destruir ou excluir. Se destruirmos a consciência do pecado teremos destruído Francesca de Dante!
“Questi, que mai da me non fia diviso, la bocca mia bacio…”
Isto é alegria e é dor, é amor e é pecado, terra e inferno, o amargor do amor que tem por herança o inferno, um sentimento complexo, contraditório por ser anjo e demônio, paraíso e inferno: é o coração do próprio homem!
Frauda-se Dante Alighieri ao insistir que a angelical Beatriz é sua musa. Não, a Musa em todo o canto é o próprio Dante, que transpira piedade, fraternidade, enlevo pelo Amor e pela Dor de Francesca e de Paolo, suas criaturas! Dante é o homem vivo no reino dos mortos, que leva para lá um coração de homem e que torna profundamente humana a poesia daqueles que já não vivem.
Nessa produção genial proliferam os germes mais delicados das criações da poesia moderna, centrada na mulher liberta das abstrações e do misticismo, que sai de suas páginas, Ama e Vive!
* CARLOS RUSSO JR. é escritor, ensaísta e professor, dedica-se ao ensino de Literatura e Mitologia, com militância política na esfera dos Direitos Humanos. Blog: www.proust.net.br[1] J. W. Goethe, F. de Santis, E. Auerbach.
(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2018/08/18/dante-alighieri-o-criador-poetico-do-eterno-feminino/)
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